Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

Deus - uma biografia psicológica pessoal (1ª parte)

INTRODUÇÃO
     Minha busca espiritual iniciou cedo. As fantasias infantis foram muito estimuladas por filmes bíblicos, mitológicos, de ficção científica e outros, além de leituras bíblicas e afins, e aulas de catecismo. Intrigava-me o mandamento de Cristo: “amai ao próximo como a si mesmo”. “Eu não amo o próximo. Percebo isso claramente. Como posso conseguir isso?”. Nas religiões em geral encontramos muitas recomendações de comportamento, sentimento e pensamento, mas quase nada sobre como consegui-lo. Essas indagações foram o início da minha busca; os mitos, seu alicerce.
     Mitos não são mentiras. São verdades eternas, que narram evidências e valores válidos a todos os seres humanos, de todas as etnias, de todos os povos. Vários mitos podem estar embasados em acontecimentos fatuais. Porém, devido à sua carga simbólica, acabaram sofrendo acréscimos, e ser mais conhecidos, neste caso, como lendas. Ainda assim, expressam verdades interiores, que tocam o coração e emocionam a maioria das pessoas, caso contrário teriam sido esquecidos há muito tempo. Por isso, muitas escrituras sagradas perseveraram até hoje. Elas constituem, principalmente hoje em dia, princípios espirituais e não realidades materiais. As evidências espirituais e psicológicas não são unívocas, ou seja, não possuem sentido único. Comportam múltiplos sentidos, tantos quantos os tipos de pessoas envolvidos. 
A questão não é se os deuses gregos existiram, mas de que
forma eles foram/são reais. 
     Não estou, de forma alguma, tentando negar a realidade de Deus e de todos os ensinamentos espirituais passados pelas religiões. Aliás, como profissional da ciência, não posso afirmar e muito menos negar a existência de Deus, uma vez que não há como se provar nem uma, nem outra perspectiva. Pretendo somar, e não subtrair. Estou acrescentando algo do que aprendi, da minha busca por tentar compreender e responder às questões sinceras que me ocorriam. Não desejo de modo algum retirar ou negar nenhuma convicção que as pessoas admitem, mas apenas pedir que considerem algo do que aqui escrevi. É uma perspectiva psicológica e simbólica e não literal dos fatos bíblicos. Por incrível que possa parecer, o cientista que nega Deus está incorrendo no mesmo erro da interpretação literalista, ao contrário da atitude isenta do verdadeiro profissional científico. A melhor postura ante qualquer fenômeno é a abertura psicológica aos fatos ainda não devidamente averiguados. A ciência não pode afirmar uma crença como exata e infalível, mas apenas considerá-la, no máximo, como hipótese, que também não pode ser negada até prova em contrário.
     A maior parte do que exponho neste trabalho provém da leitura de grandes psicólogos e personalidades reconhecidas em diversos níveis. Carl Jung e seguidores, Freud, Fromm, Nietzsche, Rogers, Campbell, Eliade, Goethe, etc., são todos grandes buscadores que me serviram seus caminhos para que eu pudesse construir o meu. A maioria dos parágrafos não possuem referência às fontes, porque são um apanhado, uma complexa teia de leituras que absorvi espontaneamente ao longo de muitos anos. Por isso, servem de sentido à grande profusão de crenças que podemos encontrar no mundo hoje. De alguma maneira, várias obras que encontrei sintonizavam com o que sentia como verdade, e depois os via corroborados em outros estudos e práticas. Assim, este texto pode ser considerado uma análise psicológica de escritos sagrados.

RELIGIÃO: DEUS; PSICOLOGIA: IMAGEM DE DEUS
     Entendo a Bíblia e várias outras escrituras sagradas como a história da evolução da imagem de Deus no homem. De acordo com Jung (1987b, §528), na psicologia, a noção de Deus é um fato verificável como as concepções sobre as emoções, os instintos, os complexos, etc. A psicologia, enquanto ciência, só pode estudar a imagem divina no homem, isto é, só pode analisar a crença em Deus: como ela surge, se desenvolve e como pode declinar no ser humano. Da mesma maneira que os instintos podem ser vivenciados, apesar de não se saber em que consistem em si, o mesmo ocorre com a imagem de Deus, a qual representa certos fatos psicológicos com os quais lidamos. Já o próprio Deus, o divino em si, o ser que independe da concepção que o indivíduo pode ter dele, deve ser deixado aos cuidados da teologia e das religiões em geral, já que a ciência não pode lidar diretamente com Ele, pois seus instrumentos são materiais e necessitam de provas físicas.
     O ponto de vista de que as escrituras sagradas narram como a imagem divina se desenvolveu no homem em diferentes povos e épocas explica, por exemplo, como Deus pode ter sido um juiz impiedoso no Velho Testamento e um pai amoroso no Novo. Como a maioria das religiões o pensam como imutável, essa concepção afirma que não é Deus que é descrito na Bíblia, mas a representação que cristãos e judeus, ao longo de centenas de anos, fizeram dele. Entendida dessa forma, não necessitamos recorrer a desvios de interpretação para entender a Bíblia. Porém, não precisamos julgá-la de maneira literal, nem de uma só forma. Além disso, esse ponto de vista permite congregar as várias outras experiências religiosas, permitindo que admitamos que a religião do outro também é verdadeira, sem que nos sintamos ameaçados. Afinal, a outra religião é apenas a história de uma imagem divina mais ou menos diferente, com outro nome, e até sob múltiplas aparências. 
     Campbell (2008, p. 49) diz que “mitologia é a religião dos outros”. Queremos que a nossa própria religião não seja mitologia. Supomos que a nossa religião seja histórica, que nossas escrituras explanam fatos ocorridos, e que há só uma maneira de entendê-las: a literal, do modo como está escrita. Justamente esse é o erro das religiões em geral, já que grande parte das verdades contidas nas escrituras são simbólicas. 
Não é de todo impossível que o famoso cavalo de troia 
tenha um dia existido.
     Não ouso afirmar que todos os acontecimentos descritos na Bíblia ou outro livro sagrado não sejam históricos. Certos mitos ou lendas se tornaram o que são porque derivaram de fatos históricos muito importantes. Estes, transmitidos oralmente, acabaram sendo acrescentados de vários outros aspectos mais gerais, coletivos, importantes para a fase de desenvolvimento da consciência do respectivo povo.
     Além disso, mesmo o cristão ou judeu mais radical poderá admitir com facilidade que muito do que se encontra na Bíblia teve origem em sonhos e visões espirituais. Estes eram ferramentas muito importantes e sagradas naqueles tempos. O fato de não serem muito considerados atualmente não os desonera do seu valor. Apesar disso, a psicologia descobriu que os conteúdos das visões, dos sonhos e das fantasias são simbólicos, ou seja, representam algo além do que conseguimos perceber em sua aparência. Eles expressam o inconsciente, um lado da psique totalmente obscuro para nós e cuja exploração pode nos ajudar a resolver muitos problemas em geral, doenças psicológicas, incrementar a criatividade e ajudar a dar sentido à vida.

DA CRENÇA RELIGIOSA PARA A VIVÊNCIA PSICOLÓGICA
     Em um momento da minha vida tive que fazer psicoterapia devido a uma depressão. Notei, na prática, a importância daquilo que nos acontece intimamente nos sonhos, na imaginação e nas fantasias. Tudo isso conta uma história oculta do que está ocorrendo interiormente conosco. Se usarmos a linguagem simbólica, a mesma da poesia e da arte em geral, podemos vislumbrar o que não sabemos a nosso próprio respeito. O mesmo ocorre com os sonhos da humanidade, ou seja, os mitos, as lendas e os contos. Estes são relatos do estado do inconsciente coletivo de certo povo, o qual permeia certa nação, continente ou o mundo todo. Por isso, quando a Bíblia nos conta sobre o inferno, o céu ou o paraíso, ela está usando de imagens para nos dizer o que todos conhecemos, mas não sabemos expressar em palavras. Estes símbolos podem exprimir, além de muitas outras coisas, estados de sentimento: o fogo da angústia que dura uma eternidade e que normalmente aparece oniricamente como incêndio, da guerra, da oposição, e o estado de felicidade em que o universo parece conspirar a nosso favor, o lugar da unidade, onde não há conflito. 
     Nos sonhos, os lugares são metáforas para “estados” de espírito, formas de “estar” (como na palavra “bem-estar”). Portanto, quando “estamos” em algum lugar onírico, isso indica como “estamos” nos sentindo. Ora, não posso, como profissional da ciência, falar em lugares “além da vida”, como céu e inferno. Mas posso dizer que eles provavelmente podem ser vivenciados como lugares materiais pela alma (psique), de maneira muito mais clara e patente sem as intrusões das percepções materiais do corpo, já que os elementos da imaginação são partes integrantes da psique. O filme “Amor além da vida”, com Robin Williams, expõe o que estou dizendo de forma muito evidente e compreensível. Também posso me explicar melhor contando exemplos da própria vivência.
     Há mais de vinte anos fui a uma reunião religiosa com parentes, fechamos os olhos e nos demos as mãos em oração. Imaginei que uma massa azulada de energia percorria a todos nós, formando um rodamoinho que girava, percorrendo nossos corpos, o círculo feito de nossos braços e mãos unidos. A oração terminou e sentei-me perto de um médium vidente que comentou com alguém ao seu lado: “Hoje estava bonito. Havia um rodamoinho azul de energia percorrendo todo o grupo durante a oração.” Fiquei boquiaberto. Havia eu imaginado algo que o médium percebeu ou percebi algo que já se encontrava lá, pensando que estava imaginando? Não sei qual a resposta correta, mas já há algum tempo havia notado, com Shakespeare, que “existem mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia”... Se podemos compartilhar o que se passa em nossa imaginação pessoal, tanto mais os processos do imaginário coletivo.
     Penso o mito ou conto de Adão e Eva também como uma representação visual do processo de amadurecimento psicológico do homem primitivo e moderno, que ainda ocorre atualmente na humanidade, desde seus primórdios. O ingresso da criança na vida (a criação do mundo), a introdução ao desenvolvimento da consciência (a nomeação dos animais por Adão), a diferenciação do mundo interior e exterior (Eva como costela de Adão), a tentação a se romper com a inconsciência da própria responsabilidade pelas decisões na vida (a sedução da serpente), o incremento da consciência do eu pela criação da persona (as folhas de figueira e, depois, vestes de pele feitas por Deus) e a expulsão definitiva do paraíso (de onde poderia apanhar o fruto da árvore da vida). Exporei essas fases mais detidamente. Mas antes gostaria de enfatizar que todo esse processo de evolução da individualidade do homem foi gerenciado o tempo todo pela figura divina, a qual, inclusive, cria as possibilidades do que é comumente chamada “queda do homem”. 
     É essa imagem que os cristãos e judeus têm de Deus que criou também a serpente e a deixou aproximar-se da árvore do conhecimento do bem e do mal, assim como do casal do Éden. Não estou falando aqui e adiante, absolutamente, como já justifiquei, de Deus em si, mas da imagem que a Bíblia passou dele. Se juntarmos todas as imagens que a humanidade criou sobre Deus, elas indicarão um elemento muito complexo, paradoxal e total, responsável pelos processos de transformação do homem, e que está por trás do que ele se tornou e se tornará. A psicologia analítica o chama de Si-mesmo, um arquétipo que também é a fundação e a base da estruturação do Eu. 
     Há uma passagem interessante sobre a revelação de quem Deus é:
13 Moisés disse a Deus: "Quando eu for aos filhos de Israel e disser: 'O Deus de vossos pais me enviou até vós'; e me perguntarem: 'Qual é o seu nome?', que direi?" 14 Disse Deus a Moisés: "Eu sou aquele que é." Disse mais: "Assim dirás aos filhos de Israel: 'EU SOU me enviou até vós.' " (BÍBLIA, 1985, Êxodo 3) 
     Como diz a Bíblia (1985, Gênesis 1: 26-27), o homem (o Eu) foi feito à imagem e semelhança dessa figura divina (o Si-mesmo). Essa concepção psicológica é muito importante e é constatada na clínica por meio dos sonhos. Nestes ocorre a observação do nosso comportamento consciente de forma objetiva, apesar de simbólica. Como os sonhos expõem o ponto de vista do inconsciente, eles consistem em uma perspectiva fora da consciência do Eu, uma visão de nós mesmos impossível de ser obtida diretamente. Por isso mesmo, a única fonte real de autoconhecimento é o reflexo onírico que o Si-mesmo mantém diante de nós. Todo o resto não passa de ponderações narcisistas do Eu sobre ele mesmo. Dependendo se o homem se identifica demais com o Si-mesmo, ou se o percebe como excessivamente distante de si, os sonhos acentuarão mais o aspecto oposto, a fim de equilibrar seu ponto de vista (VON FRANZ, 1992, p. 204-205). Assim, vejamos como os sonhos nos ajudam a nos conhecer e também enviam novas ideias a respeito do mundo interior e exterior.
     Von Franz (Ibid. p. 205) expõe os sonhos de um filho de pastor que considerava Deus demasiado fora, como o “outro” irreconhecível. Ele caminhava por um imenso deserto numa noite escura. De repente, ouvia passos atrás de si. Amedrontado, andava mais depressa, o que os passos também faziam, até que começou a correr, com a coisa horrível perseguindo-o velozmente atrás. Chegou à beira de um precipício e parou. Lá no fundo, a milhares de quilômetros, viu arder o fogo do inferno. Ao voltar-se para trás pressentiu, na escuridão, uma fisionomia demoníaca. Mais tarde, o sonho se repetiu da mesma maneira, mas ao invés da figura demoníaca, viu a fisionomia de Deus. Perto dos cinquenta anos, teve de novo o mesmo sonho pela última vez. Mas aí, em pânico, resolveu saltar no abismo. Na queda, milhares de pedacinhos de papel branco, o acompanharam. Em cada um havia uma mandala em preto e branco desenhada. Eles se juntaram e formaram um piso, não o deixando cair no inferno. Então olhou para cima e viu o próprio rosto. O Ser que o perseguia era o Si-mesmo que aparecia ora como algo terrível, ora como Deus, ora como ele próprio. “O último sonho, que evidentemente trouxe a solução, visto que a partir desse momento nunca mais se repetiu, sublinha a semelhança reflexa entre o Eu e o Si-mesmo”.
O Si-mesmo está para o Eu como Deus está para o homem.
     Também tive um sonho em que o Si-mesmo, na forma de um ser divino, aparece:
OS DOIS EUS - Sonho de 1º de fevereiro de 1992. Encontro uma pessoa que é exatamente igual a mim e assim ela diz ser. Ele pede que eu comprove tocando-o. Ao tocá-lo sinto-me como que tocado profundamente dentro de mim. Lembro da sensação ainda agora. É como se eu estivesse apalpando minha própria pele! Sinto então uma afeição imensa por ele, mas o seu rosto, a imagem do rosto me foge, embora eu saiba que é a minha. Então me pergunto como nós dois poderíamos conviver, pois as pessoas estranhariam dois homens idênticos. Ele me diz que as pessoas nunca o veriam como ele é, mas com outros rostos. E assim, ao sairmos para a rua, eu o vejo mudar de imagem: um velho de barba e cabelos brancos, uma mulher, etc. Ao despertar do sonho senti imensa saudade dele, e o sentimento de “união comigo mesmo” perdurou por quase uma semana.
     Esse sonho teve várias implicações na minha vida. Primeiro porque revela que o “outro” é eu mesmo, apenas com faces diferentes. Esse outro pode ser entendido como sendo diferentes pessoas ou até mesmo Deus, o transpessoal em mim. Segundo, porque expressa que eu nunca estou sozinho, mas que há uma companhia interna que está sempre próxima, pronta a me compreender e me causar uma impressão de paz e integridade indizível. Ele é a base do que sou.
     Neste ponto posso explicar a razão do título desta produção. Este texto é uma biografia. Ele conta a história de como a minha imagem de Deus chegou ao estágio atual. Por outro lado, esta biografia não é teológica, mas psicológica, e também pessoal, na medida em que lido com aspectos psíquicos dos sonhos, da imaginação e das fantasias que me ocorreram para interpretar os escritos sagrados. Isso contando sempre com a ajuda de mestres da psicologia, da filosofia e da mitologia.






REFERÊNCIAS


BÍBLIA. Português. A bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Paulinas, 1985.
CAMPBELL, Joseph. Mito e transformação. 1. ed. São Paulo: Ágora, 2008. 
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1991d. . v. VII/2
______. Psicologia do inconsciente. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1987b. v. VII/1
KLUGER, Rivkah Schärf. O significado arquetípico de Gilgamesh. São Paulo: Paulus, 1999.
VON FRANZ, Marie-Louise. Reflexos da alma. 1. ed. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992b.

A Via Láctea ou o caminho de Renato Russo

    “A Via Láctea”, canção da banda Legião Urbana, é uma das mais depressivas de todos os álbuns. Sua letra e o tom de voz de Renato Russo assinalam uma congruência marcante em um grande sentimento de tristeza. Apesar de sua letra ser muito explícita e não haver, aparentemente, quase nada para se explorar em termos simbólicos, vou fazer uma tentativa para torná-la ainda mais compreensível ao nível dos sentimentos e da psicologia. Para isso, vou utilizar dos conhecimentos da psicologia humanista de Carl Rogers, o qual enfatiza a importância da aceitação incondicional de si mesmo e das pessoas em geral, assim como da qualidade da comunicação intra e interpessoal. Complemento essa abordagem da psicologia pessoal com uma análise impessoal dos símbolos mitológicos que aparecem na música.

Quando tudo está perdido
Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Sempre existe uma luz…

    Longe de ser um clichê, algumas das primeiras palavras que qualquer pessoa diria a um depressivo, essas afirmativas são arquetípicas, isto é, se encontram sulcadas na alma de todo homem há muitas gerações. Para se ter uma ideia do tamanho dessa verdade, sabe-se que, quando alguém se encontra em um momento de extrema dificuldade, onde não percebe nenhuma saída ou solução, os sonhos costumam exibir imagens afins com símbolos religiosos muito conhecidos: anjos, profetas, presenças ou objetos sobrenaturais, etc. Além disso, surgem temas como motivos circulares, cruzes, grande frequência do número quatro sob a forma de quatro pessoas ou objetos, quadriláteros, pontos centrais, etc., denotando uma tentativa da psique de se ordenar, se estruturar e se fortalecer, com isso. É como se o inconsciente dissesse frases como: “Você está afundando, está desorientado. Por isso tome essa bússola ou esse guia, e oriente-se pelos quatro pontos cardeais”; “Apesar de você não ver saída, existem forças além do seu alcance que podem ajudá-lo”; “Sinta-se em paz e em unidade com essa praça em forma de círculo”. Intelectualmente o aparecimento desses símbolos pode não ser compreensível, mas eles são perfeitamente claros para nossos sentimentos, nosso lado emocional (JUNG, 1990c).
    Pessoas voltadas mais unilateralmente para a reflexão acadêmica, escolar, não podem compreender os sentimentos, pois “Já não sentimos assim que pensamos” (MENDELSSOHN, 1766, apud VON FRANZ e HILLMAN, 1990). Isso ocorre porque pensamento e sentimento são duas funções que operam de maneira completamente oposta. O primeiro usa de ideias para julgar o mundo, categorizando o certo e o errado, o lógico e o ilógico, etc.; o segundo usa dos sentimentos para isso, percebendo o que é agradável ou não, adequado ou inconveniente, e muito mais. O pensamento separa o sujeito do seu meio, distanciando-o para que possa perceber de maneira isenta; já o sentimento coloca o indivíduo em estreito contato com a realidade, de forma que possa “sentir com” o outro, usando da empatia. Por esse motivo o intelectual, quando tendendo a usar somente o pensamento para interagir com o mundo, parece ser bem mais frio que a pessoa que o faz com os sentimentos (JUNG, 1991e).
Ou sentimos ou pensamos: não é possível exercitar
as ideias e os sentimentos simultaneamente.
    Portanto, pode-se dizer, e os fatos comprovam, que, apesar dos muitos momentos de completa escuridão e desorientação, sempre existe um caminho, uma luz nessas ocasiões, e o nosso inconsciente insiste nisso. Pode ser que o eu não se recupere e não consiga superar a situação, mas a indicação motivadora sempre tenderá a estar lá. É intrínseco ao ser humano (JUNG, 1991e).

Mas não me diga isso…

    No entanto, uma coisa é surgir um símbolo em nossos sonhos, uma voz onírica falar conosco, um sentimento de alento surgir espontaneamente no meio da turbulência emocional… Outra é alguém chegar e dizer que há sempre uma saída, uma luz. Dizer isso é expressar uma ideia, é impor um pensamento, uma conclusão lógica atestada por outras situações vividas. Não há expressão de empatia nisso, nenhuma demonstração de sentimento, embora a pessoa possa ter emitido essas ideias baseada em afinidade ou compaixão. Para se lidar com sentimentos, chamados geralmente de “negativos”, é preciso que alguém “sinta com” o outro, e interaja em sintonia e de acordo com essa sensibilidade. A emissão pura de ideias apenas nos distancia da vivência do outro.
    Não existe, em geral, palavra de consolo nos casos em que estamos completamente transtornados. Isso porque esses sentimentos não podem ser negados, pois isso seria negar sua realidade. Vindas de fora essas mesmas mensagens negam o que se encontra dentro. Porém, quando conteúdos internos, associados à paz, livremente abatem outros elementos opostos, ligados ao conflito, a sensação é diferente.
    Entretanto, a luz pode surgir de fora de outro modo. Quando alguém descreve para um indivíduo angustiado ou depressivo seu estado, essa descrição funciona como uma luz na escuridão da situação que a pessoa vive. Isso é empatia. Se alguém passa ao outro o que compreende do que este relata que sente, é como se a pessoa se olhasse no espelho, e pudesse então perceber seu próprio estado, podendo, então, tomar providências a respeito. É como se, por instantes, pudesse sair do jogo de tormentos no qual se encontra detido emocionalmente. Mas essa espécie de “espelhamento” deve durar o tempo suficiente para o processo de esclarecimento ocorrer plenamente, e traga, como resultado, um certo alívio.

Hoje a tristeza
Não é passageira
Hoje fiquei com febre
A tarde inteira
E quando chegar a noite
Cada estrela
Parecerá uma lágrima…

    A depressão é um estado prolongado de tristeza. Renato parece dizer que “hoje em dia” a tristeza não é passageira, ao contrário de outros tempos. Ele se encontra febril, pois sofre com a AIDS.
    Renato, então, projeta sobre a natureza o seu estado interno. Quando chegar a noite, isto é, no futuro, quando não mais for dia, quando não houver mais a tarde em que está febril e a doença tiver cumprido o seu desígnio, a noite, a morte, chegará. Então, cada estrela parecerá uma lágrima sobre o rosto escuro do céu. O céu padecerá e chorará.
A Via Láctea, observável com mais clareza em lugares
com pouca ou nenhuma luminosidade
    A Via Láctea, o “Caminho do Leite”, deve seu nome à protusão de estrelas concentradas em uma faixa do céu noturno. Mas para Renato essas mesmas estrelas são lágrimas. Essa associação parece ser a única explicação clara para o título da música. No entanto, pode ter havido um motivo inconsciente para que o compositor a nomeasse desse modo. Aqueles símbolos a que aludi no início deste texto podem surgir não apenas nos sonhos, mas em qualquer outra manifestação do comportamento humano, pois é normal o inconsciente se intrometer nas atividades dos indivíduos sem que estes tomem conhecimento pleno do que fazem. Não só o inconsciente pessoal, que contém os conteúdos próprios de uma pessoa, mas também o inconsciente coletivo, que agrega elementos comuns a toda a humanidade. A Via Láctea já era observada na pré-história, e é motivo para inúmeros mitos.
    Os kwakiutl, um povo da Ilha de Vancouver, no Canadá, acreditam que a Via Láctea é a imagem visível de um pilar cósmico de cobre que ingressa no céu por meio da “Porta do Mundo do Alto”. Ela é representada, então, por esse povo, com um poste sagrado, um tronco de cedro de dez a doze metros de comprimento, do qual mais da metade sai pelo telhado do templo. A este é conferida uma estrutura cósmica, devido ao importante papel desempenhado pelo poste. Assim, nas canções rituais, o templo é chamado de “nosso mundo”, e seus habitantes, apresentados para a iniciação, proclamam: “Estou no Centro do Mundo… Estou perto do pilar do mundo”, etc. Na Indonésia, os Nad’a de Flores também assimilam o pilar cósmico ao poste sagrado, e o Universo ao templo. “O poste de sacrifício chama-se ‘Poste do Céu’, e acredita-se que o Céu seja sustentado por ele” (ELIADE, 1992).
    No caso de Renato Russo, pode-se dizer que um dos símbolos que sua psique usa como que para lembrá-lo de suas raízes, de seus fundamentos últimos, é a Via Láctea, que representa inconscientemente para ele um pilar cósmico onde é feito o último sacrifício. A música é seu cântico iniciático; o estúdio de gravação o seu templo. Por seu caráter sagrado e privativo, a música não foi apresentada em público. O pilar é feito de lágrimas…
A dança de inverno dos Kwakiutl, de Vancouver, Canadá.
    O mito das cinco eras da humanidade retrata que, na Idade do Bronze, o homem corrompeu-se como nunca fizera anteriormente. Então Zeus (Júpiter) indignou-se e convocou os deuses para um conselho. Todos o obedeceram e tomaram o caminho ao palácio do céu. Esse trajeto é visto nas noites claras atravessando o céu (BULFINCH, 2002).
    Mais uma vez uma pista de que o inconsciente coletivo expressou-se em Renato, um mito brasileiro, de maneira a indicar que em breve ele também tomaria o caminho que uma vez os deuses fizeram para se apresentar ao deus maior grego. A soma dessas referências mitológicas ao conteúdo de uma letra musical servem como uma orientação geral para o sentido subjacente, oculto, daquilo que o movia, do seu destino. Muitas vezes, quando esse processo, chamado de amplificação, é efetuado nos primeiros sonhos de um cliente no início de uma psicoterapia, pode ocorrer a indicação de como seguirá o tratamento, isto é, o prognóstico do processo terapêutico.

Queria ser como os outros
E rir das desgraças da vida
Ou fingir estar sempre bem
Ver a leveza
Das coisas com humor...

    O cantor queria saber usar uma máscara, como a maioria das outras pessoas, e rir do próprio sentimento, do sofrimento, fingir que está sempre bem… Nunca demonstrar estar atolado em um foço sem fundo. “Ver a leveza das coisas…” Isso porque pode-se também ver o “peso” das coisas e senti-las “pesadas”. É questão de perspectiva, pois, nesse caso, é o sujeito que projeta nos objetos sua própria perspectiva pessimista ou otimista. O mesmo que se perceber o copo metade cheio ou metade vazio.
    É possível, além disso, perceber os acontecimentos com humor, com leveza de ânimo. É impressionante como existem humoristas famosos que sofrem de depressão. Outro dia Robin Williams cometeu suicídio… Renato pode querer encarar tudo com humor, mas não pode, pois seu temperamento não permite. Pelo visto, iria sofrer ainda mais se o fizesse. Ele é capaz de perceber suas impressões internas e valorizá-las o suficiente para não desprezá-las ou fingir que não existem. “Os outros”, ou seja, a maioria das pessoas, fazem o oposto. Talvez nem chegam a perceber o que sentem ou pensam, já que rejeitam a si mesmas. No entanto, isso é muito perigoso, pois pode ocorrer de essas impressões voltarem com força redobrada mais tarde, principalmente em situaçṍes de cansaço, estresse ou doença, quando a vigilância está enfraquecida. E dessa vez sem que o indivíduo tenha conhecimento mínimo do que as motiva ou da sua origem.

Mas não me diga isso...
É só hoje e isso passa
Só me deixe aqui quieto
Isso passa
Amanhã é um outro dia
Não é?...

    Renato aqui parece acolher as frases feitas normalmente emitidas com intuito de tirar alguém da depressão ou torná-lo mais alegre. Ele as acolhe para que a pessoa o deixe em paz. “Amanhã é um outro dia. Não é?”. Este “Não é?” pede a concordância da afirmação que o antecede. Ele concorda para a pessoa, e a questão prevê que ela concorde. Porém, a estrofe anterior esclarece que Renato não concilia com esses pensamentos e, portanto, esse “não é?” constitui mais uma dúvida lançada ao outro que está ao seu lado: “Será outro dia mesmo?”. Sabe-se que para os depressivos não é bem assim...
    Aquele que tenta consolá-lo pode ter a melhor das intenções, mas provavelmente costuma fazer consigo mesmo o que o cantor aludiu na última estrofe. Faz a si mesmo e quer que os outros façam igual. É como uma corrente de cegos em que ninguém sabe para onde vai. Enquanto o indivíduo possui alguma força para superar esses sentimentos “negativos”, e estes não são muito intensos, essas sugestões podem funcionar até certo ponto, por tempo limitado. Ele pode se dar ao luxo de se distrair com outros eventos e pessoas. Entretanto, para quem sofre de depressão, um dia é igual ao outro.

Eu nem sei porque
Me sinto assim
Vem de repente um anjo
Triste perto de mim…

O filme "Divertida Mente" é uma ilustração interessante
da interação das nossas diferentes "partes"
ou subpersonalidades.
    A depressão se origina de motivações inconscientes. O depressivo, em geral, se acostumou tanto a separar partes de si mesmo e jogá-las em um porão escuro de sua psique, que um dia chega o momento de essas partes vitais reivindicarem seu direito de existir, de terem liberdade de se expressar, de poderem sair. Querem, e devem, ter o mesmo direito da pessoa que as expulsou da consciência. Aliás, por que chamar esses elementos excluídos de “partes”? Não são pessoas também? Não atuam como gente que discorda da nossa opinião? Sim, elas se comportam com autonomia, são sentimentos, ideias e impressões que nos assaltam sem pedir autorização, e todos temos essa experiência há muito tempo. São como anjos tristes, de asas cortadas, que não podem voar livremente. À sua aproximação também ficamos tristes e por isso os queremos longe de nós. Por que não deixá-los conviver conosco ao lado das porções que acolhemos alegremente? Afinal, todos fazem parte do nosso reino individual, um reino que tem o nosso nome e do qual somos governantes e gerentes. Deveríamos saber o que pensa a gente que vive nele, e assim, saberíamos porque nos sentimos “assim”, como um anjo triste.

E essa febre que não passa
E meu sorriso sem graça
Não me dê atenção
Mas obrigado
Por pensar em mim…

    O cantor teve muita febre causada pela AIDS. E ele tenta sorrir ao(s) que o visita(m), mas o faz “sem graça”, não espontaneamente, mas para o(s) visitante(s). Não quer atenção: talvez se sinta irritado ou indisposto por causa da doença, ou porque não é a atenção que gostaria de ter.
    A espécie de atenção que alguém atormentado por sentimentos depressivos, de desorientação e angústia gostaria de ter é aquela que envolve aceitação de seus sentimentos, a qual passa a provocar, pouco a pouco, a capacidade de ouvir a si mesmo, como ocorre em psicoterapia. Então o indivíduo começa a receber mensagens de seu próprio interior, e percebe que está com raiva, reconhece quando tem medo e toma consciência de que se sente com coragem. Se o processo de aceitação do outro continua, passa a haver uma abertura contínua ao que sempre negou e reprimiu. “Pode ouvir sentimentos que lhe pareciam tão terríveis, tão desorganizadores, tão anormais ou tão vergonhosos, que nunca seria capaz de reconhecer que existissem nele. Como exprime um número cada vez maior de aspectos ocultos e terríveis de si mesmo, percebe que o terapeuta tem para com ele e para com os seus sentimentos uma atitude congruente”, ou seja, ele mesmo expressa aceitação incondicional de sua própria pessoa tanto em palavras quanto em gestos e atitudes corporais, denotando que é o que sente e o que aparenta ser. Por causa do terapeuta, “Vai lentamente tomando uma atitude idêntica em relação a si mesmo, aceitando-se como é, e acha-se portanto caminhando no processo de tomar-se o que é.” Aqueles que vivem atrás de uma fachada, que tentam agir em desacordo com seus sentimentos, não conseguem ouvir o outro livremente, pois estão sempre alertas, com medo de que o outro rompa sua fachada defensiva (ROGERS, 1997, p. 75 e 375).
    Renato parece saber que as pessoas em geral querem seu bem, mas não quer sua atenção porque não é a atenção que precisa. No entanto, agradece por voltarem o pensamento para ele, já que isso denota preocupação e afeição.

[...]
Quando tudo está perdido
Eu me sinto tão sozinho
Quando tudo está perdido
Não quero mais ser
Quem eu sou...

Uma das melhores expressões do numinoso na literatura
sagrada é a revelação de Deus a Jó.
Ilustração de William Blake.
    Quando tudo está perdido, quando percebe que perderá tudo o que conseguiu na vida, que a morte está perto, que não há ao que recorrer… Quando se encontra desorientado, se sente derrotado, extraviado, desesperado, o cantor se sente sozinho e não quer ser mais quem é. Sua autoestima parece muito abalada. Como já aludido no início deste texto, é nesses momentos, aqueles em que não há qualquer esperança ou salvação, que aparecem símbolos numinosos no interior da psique ou mesmo exteriormente, como que para conferir força e lembrar ao eu suas verdadeiras raízes, com o fito de fornecer segurança, sentido e organização. A numinosidade consiste em uma situação extremamente emocional e paradoxal que, em última análise, equivale ao encontro com um aspecto divino para o qual não se está apto a apreciar ou dominar logicamente, porque é mais forte do que o eu. É algo insuperável, o encontro com o “tremendum” (impressionante) e o “fascinosum” (fascinante), frente ao qual se pode apenas ter uma atitude de abertura, deixando-se dominar e ao mesmo tempo confiando no seu sentido (JUNG, 1983, p. 627).
    Provavelmente, foi por causa do aparecimento desses símbolos numinosos, no mínimo ao nível dos sentimentos, que Renato decidiu não adicionar ao álbum “A tempestade”, onde consta a presente canção, a frase tradicional: “Urbana Legio Omnia Vincit” (Legião Urbana a tudo vence) e “Ouça no volume máximo”. Frente à situação iminente de morte, provocada pela doença letal, ele não poderia mais dizer que qualquer condição poderia ser vencida. Ele estava completamente subordinado ao desígnio do destino. Ao mesmo tempo, não deveria recomendar que as canções desse álbum fossem ouvidas no volume máximo, já que a força renovada e recente de sua depressão apontavam ao luto, pois tudo estava perdido…
    Talvez a canção mais indicativa do tipo de símbolo que apontei seja “Soul Parsifal” (Alma de Parsifal), do mesmo álbum. Como se sabe, Parsifal parte na demanda do Santo Graal, a mítica taça que contém o sangue que vazou da ferida de Cristo crucificado. Segundo a lenda, o cálice tinha a propriedade de restaurar a vida e curar doenças (WIKIPEDIA, 2015). O título da música indica que alguém tem “alma de Parsifal”, isto é, alma aventureira, corajosa, que parte em busca do cálice santo para conseguir uma cura ou a imortalidade. Renato Russo com certeza alcançou o seu intento: tornou-se imortal, vivente há décadas na nossa memória e, agora, na das novas gerações.

Mas não me diga isso
Não me dê atenção
E obrigado
Por pensar em mim...
[...]
Ilustração de Parsifal em busca do Santo Graal.


REFERÊNCIAS


BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. 26. ed. Rio de janeiro: Ediouro, 2002.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1990c.
______. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1983. v. 11/1.
______. Tipos psicológicos. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 1991e. 
ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
VON FRANZ, Marie-Louise. HILLMAN, James. A tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 1990.
WIKIPEDIA. A Tempestade ou O Livro dos Dias. Disponível em: . Acesso em 25 jun. 2015.
WIKIPEDIA. Santo Graal. Disponível em: . Acesso em 30 jun. 2015.

Como integrar o seu dragão

INTRODUÇÃO

Soluço e Banguela, seu dragão Fúria da Noite
 “Como treinar o seu dragão” (CTSD) é um filme interessante não somente porque expressa o desenvolvimento da personalidade na adolescência, mas também o confronto com partes inferiores da psique, manifesto como evolução da consciência, do impulso de ser quem se é, o processo de individuação. No título do filme “Como treinar O SEU dragão”, os artigos definido e possessivo “o seu” parecem também apontar simbolicamente para algo íntimo, pessoal. No entanto, o “treino” aludido não descreve perfeitamente o que Soluço faz com o seu dragão, pois ele mais o conquista do que o treina. Basta ver como Banguela retribui as iscas do amigo regurgitando partes delas para sua refeição. O mesmo ocorre com o desenvolvimento da personalidade, pois é preciso se compreender que a maturidade é um processo contínuo, ininterrupto, e envolve muito mais que o acúmulo mecânico de conhecimento, mas uma transformação orgânica da psique.

 O BULLYING DE SOLUÇO

Esquema consciente/inconsciente
 A vida de Soluço é permeada pelo desprezo alheio e, por conseguinte, pela autorejeição. Devido ao filho não praticar o que é aceito como certo sem reservas pelo seu povo, Estóico e outros personagens o rejeitam e o consideram um fraco, um bizonho e um desajeitado. Soluço se sente tão deslocado quanto o cisne no conto do Patinho Feio, de Hans Christian Andersen. Ele se sente um cisne em um país de patos. Alguns diálogos deixam isso bastante explícito. Bocão diz mais ou menos assim: “Se quiser sair para matar dragões, você precisa parar de ser você todo”. Por ser explicitamente tão dividido, e ser consciente disso, é que Soluço faz as coisas de maneira tão desajeitada, desastrada. Seu corpo e sua mente não são conectados. Ele mesmo se sabota a todo momento.
 Talvez por esse motivo seu nome seja “Soluço”. No Aurélio, soluço é um reflexo em que ocorre uma contração involuntária do diafragma, um espasmo que produz o início da inspiração do ar, o qual é detido subitamente pelo fechamento da glote, com a produção de ruído próprio. Isto é, soluço é uma interrupção, pela glote, de um espasmo de respiração. E o filho de Estóico parece se interromper de todas as maneiras, para agradar a todos. É um soluço ambulante, detendo o fluir da própria vida, interrompendo sua “inspiração”, seu interesse genuíno.
 De início, ele aceita o discurso do amigo Bocão e do pai, inclusive o bullying dos colegas, mas acaba percebendo que não leva jeito para caçador de dragões. Estóico, ao mesmo tempo que quer ver no filho um grande matador de dragões, o superprotege, não o expondo aos bichos. Tudo leva a crer que isso se deve ao primeiro contato de Soluço, ainda bebê, com um dragão que ele crê ter matado sua esposa, mas que, na verdade, depois se tornou aliado dela (CTSD 2).
Colegas debochando de Soluço
 Além disso, ele parece ser muito consciente de sua situação insustentável e das consequências para si mesmo. Quando Bocão diz que Soluço tem de deixar de ser ele todo, responde: “O senhor está jogando um jogo muito perigoso querendo manter toda a minha 'virgindade' máscula reprimida”. Ele pode parecer estar fazendo uma brincadeira irônica, mas está afirmando uma verdade psicológica fundamental. Porém, o que ele quer dizer com “virgindade máscula reprimida”? Virgindade máscula talvez porque não tinha ainda “deflorado” sua masculinidade, expressando-a, expondo-a da maneira como queria, ousando de acordo com seu ser. É um adolescente, um macho da espécie, mas parece não ter levado uma infância comum, subindo árvores, brincando com a exposição aos perigos comuns e afins à idade. Seu “eu” ainda era virgem no sentido de não ser ativo, de não ousar fazer, de não tentar ir “contra a corrente”. Não tinha iniciativa, pois esta deriva do interesse genuíno por determinada atividade. Não estava afim de ser o viking que seu pai queria que ele fosse.
 Segundo algumas pesquisas, os alunos que são exclusivamente vítimas de bullying (pois existem vítimas que também praticam bullying) costumam ter mães supreprotetoras, atenção infantilizada da família e serem considerados “bodes expiatórios”. Eles se apresentam à sociedade (persona) como pouco sociáveis, inseguros, passivos, retraídos, possuem poucos amigos, baixa autoestima, têm pouca expectativa de adaptação ao grupo e não sabem reagir de forma a cessar o bullying (LOPES NETO, 2005, p. S167-168; BANDEIRA e HUTZ, 2010, p. 132-133; e WILLIAMS e PINHEIRO, 2009, p. 1013). É surpreendente como toda essa descrição se encaixa de forma perfeita em Soluço. No início, ele é realmente o bode expiatório local, isto é, ele carrega os pecados ou defeitos de todos, e tem de arcar com isso.
 Ainda, de acordo com os mesmos estudos, os agressores de bullying costumam criticar na vítima o seu corpo, tamanho e desenvolvimento físico. O corpo frequentemente porta o lado sombrio do eu, e é muito sujeito a carregar as projeções alheias, pois produz elementos incômodos que não podem sequer ser citados em muitas ocasiões. O corpo representa algo do qual todo mundo quer naturalmente se livrar (JUNG, 2008, §40). Soluço é muito franzino e fraco, de constituição física quase, senão totalmente, oposta à do pai, de Bocão e dos colegas. Seu corpo com certeza representa tudo o que eles não querem ser e rejeitam em si mesmos.
 A persona do agressor de bullying é diametralmente oposta à da vítima e vice-versa, e representa o lado sombrio desta. O primeiro reprime em si as características de insegurança, inadaptação, pouca sociabilidade, baixa autoestima, passividade, timidez, etc., e as projeta violentamente sobre a vítima, pois a projeção ajuda a obter um retorno positivo das pessoas presentes, quando estas também não concordam em aceitar aspectos sombrios (ZWEIG e ABRAMS, 1994, p. 70). Aquele que projeta, no caso, tanto Soluço quanto os habitantes de sua aldeia, são incapazes de diferenciar a outra pessoa dos próprios complexos, separar fato e fantasia, perceber onde termina a própria personalidade e começa a do outro. Soluço não percebe o quanto pode ser ousado, forte e revolucionário se seguir seu próprio coração, seus instintos, e, por isso, fazer dar certo. Todo mundo é bom no que faz, menos ele. De início, projeta seu próprio potencial nas outras pessoas. Estas, por outro lado, não admitem outra realidade além da rotina a que estão acostumadas. O paradigma em vigor é: “mate, elimine os dragões porque eles são maus, caso contrário matarão vocês”. Sua sombra é o anseio arquetípico do bode expiatório, de ter alguém para culpar e atacar para poder se justificar e se absolver (WHITMONT, 2002, p. 145-146).

 O INDIVÍDUO, A SOCIEDADE E O INCONSCIENTE

 Berk, a cidade dos vikings, possui uma cultura radicalmente patriarcal, sem nenhum espaço para o feminino. As poucas mulheres que aparecem, as adolescentes colegas de Soluço, têm modos masculinos e agressivos. Em um dos diálogos de Estóico com Bocão sobre Soluço, ele relembra como o pai o mandou uma vez bater a cabeça em uma rocha e esta se partiu. “Aquilo me ensinou do que um viking é capaz... Aplainar montanhas! Devastar florestas! Domar os mares! Mesmo quando era garoto, eu sabia o que iria ser. O Soluço não é como aquele garoto.” Exterminar a natureza é uma prática moderna, assim como dos conquistadores há mais de um milênio. “Quando você carrega este machado... você carrega todos nós com você. Quer dizer que falará como nós e andará como nós. E pensará como nós. Chega disso aí.”, diz Estóico, apontando para o filho. O que interessa é o coletivo, não a criatividade, não a individualidade ou a originalidade. O filho deve enquadrar-se e ser o que é esperado dele. O conceito que Estóico tem do filho parece reduzir-se tão somente à caça de dragões. Não existem outros aspectos, outras qualidades ou defeitos, mas apenas aquilo que se relaciona ao objetivo do povo de Berk. No segundo filme percebe-se que Soluço herdou a atitude receptiva para com os dragões da própria mãe. Logo, esse é um aspecto frontalmente em oposição ao preconceito machista, ao masculino unilateral, enquanto associado ao feminino e ao princípio de Eros.
Soluço desiste de matar Banguela
 Por isso o filho de Estóico acha um jeito de conquistar os dragões cativos do seu reino ao invés de dominá-los ou matá-los, interagindo com Banguela. Ele tenta aparentar fazer isso pela força, para obter a aprovação do pai e das outras pessoas, mas não consegue sustentar a máscara, pois é um introvertido que, como tal, leva em conta a verdade pessoal e não os valores coletivos. Por isso, no início do primeiro filme ele tenta abater um dragão para aplauso geral, tenta matar o que representa sua sombra, pois não suporta mais a rejeição e quer se conformar à expectativa geral. Entretanto, ele não consegue suportar o sofrimento dessa manobra. Encontra-se, por isso, entre duas atitudes completamente opostas: aderir à expectativa do pai e da população ou confrontá-la e seguir seu próprio rumo, seu coração. 
 Conformar-se a apenas uma atitude é necessário para o desenvolvimento da consciência, pois esta implica direção, atenção, um foco intenso sobre algum objeto. Isso pode ser entendido como uma unilateralidade ou parcialidade da consciência. Mas é uma vantagem e ao mesmo tempo um inconveniente. Isso porque cria-se, com a adesão consciente a uma qualidade ou característica, uma condição oposta de mesma intensidade no inconsciente, a menos que ocorra um caso ideal em que o conjunto consciente/inconsciente flua na mesma direção, o que raramente acontece. Essa oposição será inofensiva enquanto a intensidade de seu valor não for maior. Mas se a tensão desses opostos aumenta, graças a uma adesão unilateral grande demais, a tendência oposta surge na consciência, quase sempre no preciso momento em que é muito importante se manter a direção consciente. Devido ao alto grau de tensão energética, e o inconsciente se encontrar carregado, este momento é crítico, podendo ocorrer uma explosão com a liberação do conteúdo inconsciente (JUNG, 1991a, §138). No caso de Soluço não ocorre essa explosão, mas ele é conduzido inevitavelmente de encontro ao que mais teme: à amizade com um dragão. A tensão para que não se conduza de modo diferente da cultura local é tal que ele não resiste à força do inconsciente. Este se carrega de mais energia, e ele cede. 
 O fato de Soluço conseguir montar Banguela e usar diferentes técnicas para gerenciar seu voo, parece significar a habilidade de se querer intensificar, intencionalmente, a autonomia do inconsciente, a fim de interagir com este. Esse processo ocorre na imaginação ativa, uma técnica psicológica que consiste em se aproveitar a propriedade de animação dos conteúdos inconscientes, isto é, de se “moverem e falarem” internamente na psique, sem auxílio do eu. Assim, Soluço, interagindo com seu inconsciente, seu dragão, consegue integrá-lo cada vez mais, aprender com ele e superar diversos obstáculos que, de outro modo, seriam intransponíveis. Mas isso ocorre lentamente, com diálogos e feedback mútuo.
 Quando o Fúria da Noite tem seu primeiro contato com Soluço, sai ferido, pois perde parte de sua autonomia (o estabilizador esquerdo da cauda), não sendo mais capaz de voar plenamente. Soluço, aplicando todo o seu esforço consciente, a técnica e a atenção, consegue fazer uma espécie de “flap” para estabilizar o voo de Banguela. A partir daí, este não é mais capaz de voar sem auxílio do amigo humano. Isso representa, psicologicamente, o contato da sombra com o inconsciente, e as consequências disso para este. Mais tarde, Soluço irá perder a perna esquerda, refletindo que, no processo de integração consciência/inconsciente, percebe-se, em cada nível, que ambas as partes não podem ser independentes uma da outra, pois fazem parte do mesmo sistema psíquico. Daí a observação de sua mãe de que ele e Banguela possuem a mesma idade. Então a consciência sabe que dependerá do inconsciente para conseguir alçar altos voos, para conseguir energia e disposição, interesse no que precisa e deve fazer. Por outro lado, o inconsciente também sabe que precisa da consciência como guia, para tomar decisões e dirigir a energia de que dispõe. Apenas sabendo que é tanto cavalo quanto cavaleiro, tanto copa quanto raiz da mesma árvore, pode o homem se sentir inteiro para viver plena e saudavelmente sua vida.
Soluço aproxima-se de Banguela, e a consciência do inconsciente
 Um dos momentos mais marcantes do filme é a cena em que Soluço finalmente consegue conquistar a confiança de Banguela. De início, ao libertá-lo das amarras, ele desmaia, surpreso, após o terror que sente frente à ferocidade do animal. Depois tenta oferecer peixes como refeição e recompensa, é obrigado a se desarmar de uma faca primeiro, o bicho come e o retribui com um pedaço de peixe regurgitado. Soluço tenta tocá-lo, mas ele foge e faz um círculo protetor no chão para descansar. Depois desenha distraído no chão, Banguela se aproxima e desenha um labirinto na terra e, por meio de tentativa e erro, Soluço resolve o enigma pulando as linhas e chegando até ele. Percebe que ao tentar tocá-lo ele rosna. Então, faz sua parte apenas erguendo o braço e espera que o dragão o toque, o que ele faz. A aproximação se dá mutuamente, pela iniciativa do cavaleiro e do animal. Soluço tocá-lo, em um gesto unilateral, é ofensivo, mas erguer o braço e esperar pela sua resposta, não. Banguela cede, no entanto parece demonstrar certo orgulho, como se fosse uma espécie de autoridade. Então se afasta e voa. Mas o vínculo se estabelece. Assim é, de início, a aproximação do inconsciente.
 O processo psicoterápico é repleto de “altos e baixos”, com vários sucessos de contato com o inconsciente, mas também de inesperados desencontros. Ora se está em harmonia, ora irritado, triste, de novo centrado... Em certo momento se consegue esclarecer, com algum ponto de vista, um problema de relacionamento, e a personalidade se sente em paz. Semanas depois o mesmo problema volta a ocorrer, como se anteriormente não houvesse sido solucionado, mas se percebe que agora é requerida outra perspectiva, e a trama complexa é entendida de maneira nova, em acréscimo à outra ocasião. Aos poucos percebe-se, com a vivência da psicoterapia, que o caminho se constitui de avanços e retrocessos, que se deve aceitar tanto as retas quanto os desvios, que os supostos “defeitos” só o são sob certo ponto de vista. Supostas imperfeições são qualidades valiosas em determinadas situações, na intensidade adequada. São vistas como deficiência apenas por serem empregadas em momentos inapropriados pois, como não são aceitas pelo indivíduo, este não consegue gerenciá-las. Uma vez reprimidas, não existem para ele, ou, se são admitidas, são evitadas. Reprimir elementos da personalidade pode ser expresso em sonhos como o assassinato de uma pessoa ou animal, por exemplo. 
 Isto pode ser um sinal de alerta. Em geral, representa uma separação violenta de um conteúdo inconsciente. Esse afastamento pode ser a negligência de capacidades e talentos, ou expressar a separação de alguém (HARNISCH, 1999, p. 32) ou uma mudança nesse relacionamento. Ora, se tais conteúdos são projetados em outras pessoas ou animais que representem essas capacidades, estes podem ser alvo, no mundo real, de críticas, violência ou, dependendo do grau de inconsciência do sujeito e de seu temperamento, de assassinato. É o que ocorre com os dragões nos filmes em estudo. Conteúdos psíquicos de Soluço são negligenciados devido a este ter medo de se diferenciar dos demais, tornar-se anormal ou ser considerado louco. O mesmo ocorre com Berk ao nível coletivo. Ninguém pode se desviar da norma, devido ao risco de ser rejeitado pela coletividade. As pessoas, assim como os “defeitos” que representam, devem ser aceitas como indivíduos diferentes que são, apesar, ou melhor, justamente por causa das distinções. Pessoas iguais não fazem uma sociedade, mas uma multidão, uma massa informe. Ao invés de reprimir, renunciando-se à chance de se gerenciar tais deficiências, deve-se admiti-las e aprender a lidar com elas.
 Mais tarde, Estóico diz que o filho passou para o lado dos dragões, mas está errado, já que Soluço conseguiu se posicionar de maneira a aceitar ambos os lados. O pai não consegue entender a capacidade de o filho conseguir conciliar os lados opostos. Como introvertido que é, Soluço simplesmente consegue perceber que o que ele via em Banguela era ele mesmo. Nas suas próprias palavras: “Olhei para ele e vi a mim mesmo.” Sim, porque os dragões representam uma soma de carências, de buracos, no povo de Berk, já que aprendeu a esconder partes vitais de si mesmo.

 O SENTIDO DO DRAGÃO

Marduk luta com Tiamat, o dragão primordial
 A chave para se compreender CTSD é atentar para o significado do dragão. Este é um símbolo extremamente vasto e abrange a figura da serpente. Conforme Eliade (1992, 29-30) expõe neste e nos parágrafos a seguir, mitologicamente, “nosso mundo” é uma reprodução da obra dos deuses, a cosmogonia. Logo, os adversários que o atacam são similares aos demônios, sobretudo ao Dragão primordial vencido pelos deuses nos primórdios dos tempos. É como se o ataque ao “nosso mundo” fosse uma desforra do Dragão mítico, se rebelando contra a obra dos deuses. Assim, toda destruição de uma cidade equivale a uma regressão ao Caos, e toda vitória contra o inimigo, à vitória exemplar do deus contra o Dragão (Caos). No Egito, o faraó e seus inimigos eram assimilados ao deus Rá e seu opositor, o dragão Apophis. Dario se identificava com um herói mítico iraniano que se dizia ter matado um dragão de três cabeças. A tradição judaica descrevia os reis pagãos com traços de dragões (ver Nabucodonosor em Jeremias 51, 34, e Pompeu nos Salmos de Salomão 9, 29).
 O dragão equivale ao monstro marinho, à serpente primordial, e é símbolo das águas cósmicas, das trevas, da noite, da morte, do amorfo e do virtual, de tudo aquilo que ainda não tem uma forma. Nos mitos foi vencido e esquartejado pelo deus para que o cosmos viesse à luz. Marduk deu forma ao mundo a partir do corpo do monstro marinho Tiamat. Jeová criou o universo após a vitória contra o monstro primordial Raabe. [Nota do editor do blog: Na versão da Bíblia de João Ferreira de Almeida há o seguinte versículo: “Porventura não és tu aquele que cortou em pedaços a Raabe, e traspassou ao dragão?” Isaías, 51, 9] Porém, essa vitória do deus sobre o dragão deve ser repetida simbolicamente todos anos, pois todos os anos o mundo é recriado. Da mesma forma, a vitória do deus contra as forças das trevas, da morte e do Caos se repete a cada vitória da cidade contra os invasores.
Muros protegiam as cidades na Idade Média
 No início, é muito provável que as fossas, labirintos, muralhas, etc., que protegiam as cidades e vilas tenham sido defesas mágicas para impedir a invasão de demônios e das almas dos mortos, mais do que a ataque de humanos. Na Índia se fazia um círculo em volta da aldeia para se interditar os demônios de uma epidemia. Na Idade Média, os muros das cidades eram consagrados ritualmente como defesas contra o demônio, a doença e a morte. Aliás, para o pensamento simbólico é muito fácil se assimilar o inimigo humano ao demônio e à morte, já que o resultado dos ataques demoníacos ou militares é o mesmo: a ruína, a desintegração e a morte. Ainda nos dias de hoje as mesmas imagens são usadas ao se formular os perigos que ameaçam certas civilizações: fala-se do “caos”, da “desordem” e das “trevas” onde “nosso mundo” se afundará. Essas expressões significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, e a nova submersão num estado fluido, amorfo e caótico. São prova de que imagens arquetípicas ainda sobrevivem, mesmo na linguagem do homem não religioso (ELIADE, 1992, 29-30).
 Berk possui uma estrutura social organizada e há muito estabelecida. Os dragões representam o caos, a desordem que se seguiria se passassem a não mais persegui-los. Tudo seria reestruturado, e seria inevitável um certo nível de desordem inicial.
 No livro “As crônicas de Nárnia”, no capítulo “A viagem do Peregrino da Alvorada”, de C. S. Lewis (2011), assim como no filme correspondente, existe um menino muito impertinente, irritante, arrogante e crítico, chamado Eustáquio Mísero. Quando ele se perde do seu grupo, avista um dragão à beira da morte e dorme por uma noite em sua caverna. De manhã, descobre que havia se transformado, para sua surpresa, num dragão. Acaba encontrando seu grupo sob a nova forma e consegue se revelar. O leão Aslan o faz voltar à forma humana ao dizer para se banhar em uma fonte, uma piscina redonda, e tira sua pele escamosa, como ocorre com a serpente, que perde a antiga pele. Mas o mais interessante é a transformação de personalidade que passa Eustáquio. Ele se arrepende de seu comportamento anterior e se torna uma pessoa muito mais gentil e um verdadeiro herói, que continua as aventuras em Nárnia no lugar dos primos. Mas por que essa mutação psíquica ocorre após ele se transformar em dragão? Ora, porque é preciso que uma forma se “derreta”, perca seus contornos originais, se “desforme”, se “descasque”, se funda e se dissipe, para depois ganhar um novo contorno. Como Eliade (1992) afirmou anteriormente, o dragão representa uma nova imersão num estado amorfo e caótico, o início de uma nova ordem. Como Cristo disse em Mateus 18, 3: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus.” (BÍBLIA, 1985). A criança é outro símbolo para o amorfo, isto é, a versão do ser humano original. Voltar a ser criança é se fundir para se deixar emergir em nova versão. É preciso morrer – outro sentido para o dragão – para nascer de novo.
 Algo semelhante ocorre em “O Hobbit”, de Tolkien, e também no respectivo filme. Os anões, Bilbo e Bard saem transformados no confronto com Smaug. Segundo a Wikipédia (2015), seu nome deriva do alemão primitivo “smugan”, significando “deslizar em um buraco”. Remotamente, também se liga ao nome “smeagol” que, no inglês antigo, aparece na forma “smygel” que tem o sentido de “terrier, lugar em que se escorrega”. Smeagol remete a Gollum, a criatura sombria da qual Bilbo rouba o anel. Não é preciso muita imaginação para relacionar um buraco às trevas, assim como a Gollum e, por sua vez, ao dragão Smaug. Bilbo Bolseiro sai da caverna de Gollum, assim como do confronto com o dragão, descobrindo qualidades que nem imaginava que tinha. Também todos os anões saem transformados, principalmente Thorin. Bard, então, se transforma de pescador em herói e depois em rei.
 O “Ciclo da Herança”, de Christopher Paolini, é uma fantasia épica em que existem cavaleiros de dragões, como ocorre em CTSD. Desta quadrilogia foi feito um filme do primeiro livro, “Eragon”, possivelmente conhecido por quem não leu os livros. A integração que existe entre cavaleiro e dragão pode ser comparada à dos filmes em análise. Aqui apenas é mais “mística”, já que ambos compartilham suas consciências. É uma espécie de simbiose, pois se um morrer, o outro sente como se tivesse perdido uma parte de si mesmo e pode vir a perecer pelo luto. O relacionamento dragão/cavaleiro aponta para um simbolismo unitário: a dupla na verdade é um só elemento, que é visualizado como dois, consciente e inconsciente. E essa mesma expressão aparece no filme em estudo.
A integração dragão/cavaleiro em "Eragon"
 “Como treinar o seu dragão” é uma animação bela, de enredo comovente, voltada não só para crianças, mas também, e talvez muito mais pertinente, para adultos. É preciso que cada um reconheça o dragão que pode ser, o potencial embutido em seu interior, caso contrário este se torna destrutivo. É o que ocorre, por exemplo, com o povo brasileiro atualmente. Faz-se extremamente necessário que ele perceba como o dragão da corrupção se encontra presente em sua psique coletiva, o quanto é levado impulsivamente a agir em proveito próprio quando se trata do bem público ou alheio, mesmo que seja em um detalhe insignificante. A medida do ódio contra os corruptos corresponde ao grau da corrupção projetada, contida internamente. Não é que não se deva providenciar cadeia a eles. Trata-se, antes, da decisão de concordar em punir com a consciência de que se é punido com eles, de que a corrupção não pertence só ao outro. E que se deve gerenciar este dragão específico, questionar o motivo de querer tocar no bem alheio e, iluminado por essa clareza, usá-lo para encontrar o tesouro interno: a diferenciação dos próprios valores, encontrar importância no que se tem por meio do próprio mérito e, ainda, votar com consciência.

(As referências não encontradas aqui podem sê-lo no banco de referências deste blog: clique aqui.)

BANDEIRA, Cláudia de Moraes; HUTZ, Claudio Simon. As implicações do bullying na autoestima de adolescentes. Psicol. Esc. Educ. (Impr.),  Campinas,  v. 14,  n. 1, jun.  2010 .   Disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572010000100014&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em  12  jun.  2012.

BÍBLIA. Português. A bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Paulinas, 1985.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LEWIS, C. S. As crônicas de Nárnia. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

LOPES NETO, Aramis A. Bullying: comportamento agressivo entre estudantes. J. Pediatr. (Rio J.),  Porto Alegre,  v. 81,  n. 5, Nov.  2005 . Disponível em < http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0021-75572005000700006&lng= pt&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em  23  abr.  2012.

WIKIPEDIA. Smaug. Acesso em 10 fev. 2015.

WILLIAMS, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque; PINHEIRO, Fernanda Martins França. Violência intrafamiliar e intimidação entre colegas no ensino fundamental. Cad. Pesqui.,  São Paulo,  v. 39,  n. 138, dez.  2009 . Disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0100-15742009000300015&script=sci_arttext >. Acesso em  17  jul.  2012.