Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

As bases psicológicas da atração sexual (em construção)

* As definições não encontradas no texto podem 
ser obtidas no vocabulário deste site.
INTRODUÇÃO

     A apreciação das atividades sexuais é comum em determinadas escolas psicológicas, principalmente na psicanálise. Esta se distinguiu pronunciadamente pelos nomes sexuais que adotou para os diversos aspectos psicológicos do desenvolvimento ou da estrutura psíquica humana. Termos como “Complexo de Édipo”, “fase oral”, “id”, “superego”, etc., exemplificam claramente isso. Sigmund Freud, o criador da psicanálise, acabou por reduzir a maioria das expressões psíquicas às causas instintivas. A psicologia como ciência natural estaria subordinada ao princípio da causalidade e, por conseguinte, as doenças psíquicas seriam causadas por eventos passados, principalmente como efeito dos eventos da vida infantil. Essa é uma visão mecanicista e redutiva, que procura restringir a amplitude dos fenômenos psíquicos. 
     Já para a escola da psicologia analítica de Carl G. Jung, a sexualidade é apenas um dos poderosos instintos da psique humana. Não seria mais forte que o instinto de sobrevivência, por exemplo, que teria força igual ou maior. Essa escola já aborda a psique do ponto de vista energético, e entende os fenômenos partindo do efeito para a causa. Os fenômenos psíquicos seriam processos energéticos que têm uma direção definida, que obedecem a uma diferença de potencial. Suas bases são as relações dos elementos e não o enfoque nos elementos em si e seu movimento no espaço. Assim, não somente se perguntaria o por que de uma manifestação psíquica, mas também o para que ela ocorreu, qual o seu objetivo final. Esse ponto de vista é considerado construtivo, pois não restringe o alcance das expressões da alma, mas a estende e toma como única e individual as suas figurações. Construtivo também porque possibilita uma evolução da consciência, ao contrário da causa, que vincula a energia psíquica, ou libido, aos fatos elementares. Esta é necessária. Porém, a alma não pode parar nesse estágio, mas deve converter as causas em símbolos de um caminho a ser percorrido (finalidade). A força de atração desses símbolos representam a quantidade de energia vinculada a eles (JUNG, 1991a, §2-5).
     Ora, a visão causalista da psique ficou bem explícita no livro recém-lançado do psicanalista Brett Kahr, “O sexo e a psique”, onde o autor, usando de uma rigorosa metodologia científica, realizou a mais ampla pesquisa sobre as fantasias sexuais em um período de cinco anos, reunindo respostas de aproximadamente 19 mil voluntários. Apesar de abordar várias categorias de fantasias sexuais de maneira redutiva, o livro é muito interessante pela grande variedade de fantasias expostas e pela maneira flexível com que o autor as discute.
     O objetivo deste texto é fazer um breve confronto com a obra citada a fim de se questionar os pontos de vista freudianos vigentes do assunto, procurando-se chegar a uma perspectiva que abranja o fenômeno sexual como um todo. Ao mesmo tempo, algumas formulações da psicologia analítica serão apresentadas de maneira a revelar novos pontos de vista no campo sexual, onde o desafio é romper com a exclusividade do sentido causalista, que vincula as fantasias sexuais tão somente ao trauma e/ou a fatos passados da vida infantil. 

COMPREENDENDO OS INSTINTOS

Figura 1: A usina hidrelétrica transforma a energia
mecânica da água em energia elétrica.
     O corpo humano é uma espécie de aparelho ou máquina que transforma a energia que recebe em outras manifestações dinâmicas equivalentes. Esse processo de transformação é o que se chama de vida. Esse aparelho utiliza condições naturais para transformar energia física e química em atividades culturais. Por conseguinte, a própria cultura humana funciona como uma espécie de máquina, que se diferencia cada vez mais. Da mesma maneira, o aparelho psíquico converte os instintos naturais em símbolos, isto é, formas dinâmicas que possibilitam a produção de trabalho, deixando energia psíquica disponível, mais conhecida como “vontade”, para o ego. Essa transformação ocorre por meio da canalização para um análogo daquilo que é objeto dos instintos, como uma usina hidrelétrica, que imita uma queda d’água para se apossar da energia mecânica, e a converte em energia elétrica. 
     Da mesma forma, os Watschandis, da Austrália, realizam seu ritual de primavera como um ato mágico de fecundação da terra. Eles colocam arbustos ao redor de um buraco oval na terra, para que pareça um órgão genital feminino. Então, dançam em volta desse buraco, enfiando suas lanças no buraco e gritando, em sua língua: “Não é buraco! Não é buraco! É uma vulva!”. Enquanto isso não olham para qualquer mulher. Ora, o buraco é uma analogia do órgão genital feminino – objeto do instinto sexual. O grito e a atitude de não olhar para as mulheres é um auxílio para que a analogia seja mantida sem interferências. Esse rito consegue transferir libido para a terra, a qual adquire um valor especial, fazendo com que se voltem para seu cultivo. “A energia sexual é associada intimamente ao campo, de modo que o cultivo da terra adquira, por assim dizer, o valor de um ato sexual”. O campo passa a exercer uma atração sobre o cultivador. O mesmo acontece com outras atividades do homem primitivo, como a caça, a guerra, etc., os quais são introduzidos como cerimônias de analogia mágica ou encantamentos preparatórios que manifestam claramente a finalidade de canalizar a libido para a atividade necessária (JUNG, 1991a, §80-87).
     Tipicamente, o ser humano saudável é capaz de aproveitar parte da libido dos instintos, cuja maior parte dirige o curso regular da vida, em atividades análogas. Essa energia psíquica disponível canalizada por meio de representações simbólicas, acaba sendo empregada em formas diferentes das contidas no instinto original. Essa é a origem das atividades culturais. Para o neurótico essa canalização da libido por meio dos símbolos ocorre de forma inadequada, pois a formação destes é de um nível muito baixo para sua expressão mais completa, adaptada ao homem moderno. Por isso, ela não se converte em trabalho, como ocorre com o homem saudável, mas em uma miríade de fantasias, inclusive sexuais, muito comuns ao homem primitivo (JUNG, 1991a, §88-95).
     Jung (1991a, §415-416) afirma que o mergulho nos instintos leva a um estado de inconsciência, isto é, à compulsividade pura, onde não há domínio da vontade. Ir simplesmente de encontro aos instintos ocasiona maior domínio destes sobre o ego, o que torna impossível qualquer conhecimento. Mas o instinto é apenas parte de um fenômeno maior,, mais conhecido por sua força de atração.  A outra parte, que são as várias possibilidades de representação dos instintos, ou arquétipos, forma com o desejo instintivo um todo, ilustrado assim, em analogia com o espectro da luz visível:
Figura 2: Comparação do instinto e do arquétipo ao espectro da luz visível
     O processo instintivo encontra-se, por analogia, na parte vermelha do espectro; ao passo que as representações instintivas (imagens), na parte violeta do espectro da luz. Ora, o vermelho combina mesmo com o instinto, enquanto o violeta retrata o espírito (ou melhor, o lado arquetípico do fenômeno). 
     Instintos e arquétipos são faces de um mesmo fenômeno, de uma mesma atividade vital, que aqui são divididas em dois processos para fins de compreensão. Os instintos são processos inconscientes sem interferência da razão. São formas de reação uniformes e regulares que determinam o nosso comportamento consciente. Uma parte deles pode, pelo cuidadoso treinamento, ser transformado em atos da vontade, como explicado anteriormente. 
     Por outro lado, os arquétipos são formas de perceber uniformes e regulares. Eles determinam o modo como o indivíduo apreende e retrata o mundo. Como já exposto, são correlatos, nas possibilidades de imagens que agregam, aos instintos, ou melhor, são como um autorretrato dos instintos ou uma autopercepção destes. 
     Essas imagens instintivas, ou melhor, arquetípicas, são autônomas na psique, continua Jung (1991a, §521). Assim, elas interferem com a vontade do indivíduo pois, geralmente, não são reconhecidas pela consciência, são sombrias. Estas contaminam-se com certas pessoas ou objetos do mundo exterior, que irão, por isso, portar um valor exagerado para o sujeito. Outra forma de dizer isso, seria que o sujeito projeta suas imagens autônomas em pessoas/objetos, originando forte atração ou repulsão, sexual ou não, e, em muitos casos, compulsão.
Para se trabalhar a força instintiva a solução é lidar com suas representações, que retratam o instinto em outro nível, que não o da atração ou o biológico. O autor continua, afirmando que a paixão física e a espiritual são inimigas mortais, embora sejam irmãs. Isso foi retratado na figura do espectro de luz, com o arquétipo no lado do azul e o instinto no vermelho. Apesar das imagens arquetípicas serem o autorretrato dos instintos, quando representados, estes perdem seu poder de atração. Daí se dizer que são como forças antagônicas. Mas o autor afirma que, apesar disso, basta apenas um pequeno toque para que uma delas se converta na outra. 
     Logo, o mergulho na esfera dos instintos não conduz à sua percepção consciente, nem à sua assimilação, porque a consciência luta em pânico contra a ameaça de ser tragada pelo primitivismo e pela inconsciência da esfera dos instintos. Este medo é tema constante do mito do herói e de inúmeros tabus. Quanto mais o sujeito se aproxima do mundo dos instintos, mais violenta é a tendência a se libertar dele e a arrancar a luz da consciência das trevas dos abismos sufocadores. Porém, como possibilidade de representação do instinto através de imagens, “o arquétipo é um alvo espiritual para o qual tende toda a natureza do homem; é o mar em direção ao qual todos os rios percorrem seus acidentados caminhos; é o prêmio que o herói conquista em sua luta com o dragão” (JUNG, 1991a, §415). Isso ocorre porque o desenvolvimento da consciência, e a concomitante representação simbólica dos instintos, se opõe à força destes. E o homem moderno e suas produções, resultado do aprimoramento extremo da consciência, os repele com força ainda maior.
Figura 3: "A compulsão seria como uma faísca 
que visa descarregar a tensão energética."
     Portanto, se entregar aos instintos não reduz a compulsividade geral, ou especificamente sexual, do indivíduo, exceto temporariamente. Para isso ocorrer, o indivíduo teria que se tornar consciente do instinto sexual, pois só se tem domínio sobre o que se é consciente. Um exemplo que ajuda a explicar a citação acima, é imaginar uma pessoa que se movimenta em um quarto escuro e desconhecido. Ela provavelmente irá tropeçar, cair ou até se ferir se não acender a luz e se tornar consciente dos objetos presentes e da sua posição no recinto. O mesmo ocorre no indivíduo: é preciso que ele se torne consciente dos conteúdos e de sua movimentação na sua psique. É preciso que ele o faça para com os impulsos sexuais e outros, se não quiser ser dominado por eles. 
     Isso ocorre porque os instintos compõem a esfera animal e primitiva do ser humano e devido à consciência ser uma aquisição tardia da humanidade, só conquistada com imensos sacrifícios do seu lado instintivo. A consciência, por outro lado, é de natureza determinada e dirigida, caracterizada pela persistência, regularidade e intencionalidade, o que gerou a ciência, a técnica e a civilização, como forma de adaptação ao mundo. Por isso, ela bloqueia e/ou inibe os conteúdos do inconsciente. Este é composto de elementos que parecem ou são realmente incompatíveis, ou que podem conduzir a um fim não desejado. Uma definição bastante simples da consciência e do inconsciente: a primeira constitui um processo momentâneo de adaptação; o segundo, o desconhecimento do que nos afeta imediatamente. A consciência efetua um julgamento, este baseado tão somente em seu precário conhecimento - sua experiência passada - sobre os conteúdos incompatíveis do inconsciente. Por isso ela é preconcebida e parcial, em síntese: unilateral, pois inibe o novo, o qual poderia enriquecer os processos dirigidos. Daí decorre a função compensatória ou complementar do inconsciente em relação à consciência (JUNG, 1991a, §134-138). 

Figura 4: "A imagem do instinto sexual equivale a 
um aparelho colocado para funcionar entre dois polos."
     “Especializar-se em algo significa reunir energia e acrescentá-la àquela aptidão da personalidade. Retira-se a libido de uma outra habilidade para direcioná-la a algum aspecto que se escolheu”(JOHNSON & RUHL, 2010, p. 33). Conclui-se, portanto, que os conteúdos da consciência possuem mais energia psíquica do que os que se encontram no inconsciente, que encontram-se debilitados. Entretanto, se a incompatibilidade da consciência e do inconsciente fica por demais forte, devido à excessiva unilateralidade da primeira, o conteúdo inconsciente pode romper a inibição ou repressão, e a pessoa ficar consciente do que antes rejeitava. É isso o que ocorre, em analogia, com os polos elétricos se, dentro de certa distância, a tensão ficar muito elevada: uma faísca salta de um polo a outro, equilibrando o sistema. No sistema psíquico não é diferente. A compulsão seria como uma faísca que visa descarregar a tensão energética. No entanto, esse descarregamento é temporário, porque não se evita a repetida recarga de tensão do sistema psíquico, porque a consciência se defende, até mesmo em pânico, contra o primitivismo do instinto, como mencionado previamente por Jung. Por isso, a chave para se conseguir amenizar e integrar a compulsão sexual é lidar com a imagem do instinto sexual, com o símbolo arquetípico de sua compulsão. Isso equivaleria a um aparelho (imagem ou símbolo) colocado para funcionar entre os dois polos. O modo como o sujeito pode fazer isso será abordado mais adiante.

A ATRAÇÃO SEXUAL E O FETICHE
     A consciência não tem uma relação direta com qualquer objeto material. Percebemos apenas as imagens que nos são transmitidas indiretamente, através de um aparato nervoso complicado. [...] A consequência disso é que aquilo que nos parece como uma realidade imediata consiste em imagens cuidadosamente elaboradas e que, por conseguinte, nós só vivemos diretamente em um mundo de imagens ” (JUNG, 1991a, §745-746). 
Figura 5: Mecanismo da projeção; se o sujeito reprime certa qualidade ou defeito, ela fatalmente será projetada sobre o outro, gerando atração ou repulsão; se não ocorre a repressão da qualidade ou defeito, há apenas o reconhecimento.
     O que provoca a forte atração sexual por certa pessoa pode até ser uma qualidade especial que ela possua. Porém, “quanto mais subjetiva e mais emocional for esta impressão, tanto maior será a possibilidade de que esta qualidade resulte de uma projeção” (JUNG, 1991a, §519). Mas é preciso diferenciar a qualidade real da pessoa ou objeto, da qual advém a atração, do valor, significado ou energia que esta tem para o sujeito, continua o autor. Frequentemente a pessoa, inconsciente da qualidade que alguém projetou em si, oferece uma oportunidade de escolher a projeção ou a provoca. Com isso, ela atua diretamente sobre o inconsciente do interlocutor. Mesmo que a qualidade projetada possa ser encontrada na pessoa, a projeção não deixa de ser subjetiva ou se referir a uma imagem presente no sujeito, pois ela sempre confere um valor exagerado a qualquer traço desta qualidade presente na pessoa. Essa imagem é uma grandeza psicológica distinta da percepção da pessoa, mas é sustentada por esta. A energia psíquica, vitalidade ou autonomia desta imagem permanece inconsciente enquanto perdurar a coincidência com a pessoa propriamente dita e sua vida. Por isso, o sujeito dificilmente reconhece a projeção ou a presença dessa imagem correspondente em sua personalidade, porque ela contamina-se com a autonomia da pessoa lá fora. Isso concede à sensualidade desta uma realidade esmagadora ou valor exagerado com relação ao sujeito. Essa identidade entre a imagem subjetiva e a pessoa, chamada de projeção, confere a esta uma importância que não lhe pertence, mas que a possui desde sempre, porque é original. Porém, a dissolução dessa identidade devolve ao sujeito a libido, que antes era empregada exageradamente na relação com a pessoa, para o seu próprio desenvolvimento na maturidade relacional com esta e também com outras, em que a mesma imagem era ou poderia ser projetada em diferentes graus (Ibid, §520-523). 
     Clifford, um advogado de 64 anos, não fazia sexo com sua mulher há mais de dez anos porque esta não concordava em, entre outros pedidos, dizer obscenidades durante o ato sexual. Então ele se tornou viciado em masturbação, quando então imagina sua amante nas fantasias dizer várias obscenidades, o que o excita tremendamente. Nas suas lembranças da infância, e soube que seus pais se revezavam para lavar sua boca com sabão sempre que pronunciava uma obscenidade, como “droga” ou “porra”. Tal prática “disciplinar” era comum nas décadas de 1940 e 1950. O autor, com base em sua vasta experiência clínica, sugere que “ao usar linguagem grosseira com sua amante imaginária e ao implorar que ela faça o mesmo, Clifford conseguiu triunfar sobre a crueldade dos seus pais que nunca o deixaram pronunciar nem sequer um ‘caramba’ ou ‘poxa’”. Se deliciar com essa linguagem seria como um ato desafiador em relação aos pais. Uma maneira de lidar com traumas anteriores de maneira criativa e excitante (KAHR, 2009, p. 556-557). 
Figura 6: A diferença entre informação e projeção.
     Entretanto, pode-se dizer que essa é uma forma um tanto tendenciosa de encarar o fato. Pode-se pensar também que Clifford foi obrigado a vestir uma máscara muito rígida de pureza com a educação que teve de seus pais. Isso lançou a prática do falar obscenidades no inconsciente, assim como muita coisa que se relaciona com esse comportamento. Usar palavras obscenas, assim como ouvir alguém fazer o mesmo, confere, para ele, o prazer de ter alguém que o aceita como é, inclusive suas “sujeiras”. A atração por tal imagem é tanta, que ele chega a sentir atração pela pessoa ou situação que corresponde a essa imagem ou complexo. Essa atração teria uma finalidade, como já exposto na introdução. Qual seria ela? Enquanto Clifford não se tornar consciente dessa atração enquanto símbolo inconsciente em si mesmo, continuará a sentir excitação sexual apenas enquanto ele ou outra pessoa satisfizer as condições do complexo. Este atua como se fosse uma pessoa ou personagem dentro da personalidade de Clifford que, coincidindo com sua correspondência lá fora, provoca uma atração compulsiva.
     Ora, o inconsciente também percebe, tem intenções e pressentimentos, sente e pensa como a consciência (JUNG, 1991a, §673). Isso não é nenhum mistério, porque o inconsciente faz parte da mesma personalidade; apenas que sua vitalidade encontra-se separada da vontade do sujeito, pois este encontra-se cindido. Os conteúdos do inconsciente mencionados anteriormente são os complexos, que são imagens de uma certa situação psíquica de forte carga emocional e coerência interior – exemplo: trauma, choque emocional, conflito moral, etc. – com um grau elevado de autonomia em relação à vontade do sujeito e incompatível com a atitude habitual da consciência. Se um complexo está ativo, isto é, se ele foi despertado de alguma forma – uma pessoa ou objeto que corresponde à imagem e aos significados pertencentes ao complexo – ele deixa o indivíduo em um estado de não liberdade, de pensamentos obsessivos e ações compulsivas. Conscientemente, o sujeito o percebe como um corpo estranho, com vida própria. Nos sonhos eles aparecem em forma personificada; nos psicóticos, eles aparecem como “vozes” de pessoas. Quanto maior a inconsciência dos complexos, maior a sua liberdade na psique, e maior também sua capacidade de assimilar o ego, ainda que temporariamente, o que resulta na sua identificação com o complexo. Na idade média esse fenômeno chamava-se “possessão”. As blasfêmias de um possesso e um lapso de linguagem se diferenciam apenas no grau de intensidade. O homem mais primitivo os chamava de “demônios”, mas a evolução da consciência gerou tanta intensidade no complexo do eu que hoje eles perderam a autonomia original (JUNG, 1991a, §200-204). 
     Portanto, o ser humano não sente atração com a mesma intensidade por qualquer indivíduo, e esta não é despertada, com a mesma força, por qualquer objeto. Apenas aquele que possui um significado pessoal, que corresponde (de modo mais ou menos completo) a uma imagem interna específica, isto é, uma imagem arquetípica - o outro lado do instinto - pode despertar uma intensa atração. E essa imagem é incompatível com os conteúdos da consciência do sujeito. Portanto, é inconsciente, como já exposto. Por isso essa imagem é chamada poeticamente de sombra. Existem outras imagens que correspondem mais precisamente aos conteúdos projetados no sexo oposto ao do sujeito. Porém, para fins práticos deste texto, que se volta também para aqueles que desconhecem mais ou menos a psicologia junguiana, haverá referência a todos esses conteúdos sob o nome de sombra, que é também a forma como eles são apresentados em geral à consciência de indivíduos tão  inconscientes quanto a média geral.
     O desprezo e a incompatibilidade que o ego sente pelos aspectos sombrios provoca uma tensão em relação a estes. Outra forma de compreender isso, é dizer que a necessidade afetiva ou a carência de atenção consciente que o indivíduo sente, sem seu conhecimento, em relação a eles, provoca fantasias sexuais de atração por pessoas que possuem um “gancho” para esses aspectos sombrios, ainda que de pouca intensidade.
     A intenção que a sombra tem de buscar o que lhe falta por intermédio do novo parceiro explica por que os opostos se atraem – otimistas e pessimistas, perseguidores e fujões, extrovertidos e introvertidos, artistas e cientistas, pragmatistas e buscadores espirituais – juntos, esses pares formam um conjunto. Consequentemente, por meio de uma divisão de trabalho que jamais é mencionada, muitos casais operam como uma única pessoa, trocando forças e fraquezas um com o Outro, durante um período de compensação. Depois disso talvez descubram, em determinada altura do caminho, que exatamente os traços do parceiro que lhe pareciam mais atraentes – parte da solução da sombra – tornaram-se os menos atraentes – parte do problema. (ZWEIG e WOLF, 2000, p. 179)
Figura 7: O herói como sombra na criança.
     Como exemplo, os autores supracitados (Ibid., p. 180) citam Shirley, que acreditava, desde criança, que não era criativa e tinha pouca inteligência. Para compensar o sentimento de inferioridade, ela procurava tornar-se atraente. Porém, como se sentia atraída por homens criativos, ela os namorava, só para descobrir depois que eram pouco disponíveis. Em terapia, descobriu que sua criatividade era, na verdade, parte de sua sombra, à qual resistia inconscientemente. Então, a atração por parceiros criativos e pouco disponíveis desapareceu, e passou a utilizar menos seus poderes de sedução, e mais seus verdadeiros sentimentos para se relacionar com os homens.
     Joel e Ellen iniciaram um namoro após o término do casamento de 12 anos do primeiro, que se surpreendera com nova força de atração. À medida que o envolvimento aumentou, Joel tentou, para se sentir seguro, fundir-se emocionalmente à parceira, sem perceber que era um ser separado e independente. Ellen, por sua vez, se agarrou à sua independência para se sentir segura, julgando a dependência inaceitável. Assim, Joel passou a achar que nunca obteria amor suficiente de Ellen, e esta, sentindo-se sufocada, passou a atacá-lo com palavras cruéis para restaurar sua segurança. Esse comportamento passou a repetir-se. Em terapia, os dois descobriram que Joel tinha, na sombra, um personagem distante, e Ellen, uma dependente emocional. O trabalho com a sombra consistiu em cada um tornar-se consciente das características rejeitadas. 
À medida que Joel lentamente aprendeu a encontrar segurança legítima dentro de si, começou a descobrir um personagem de sombra que portava a necessidade de separação e de manter distância. Já não ficava em pânico quando estava só, nem achava que ia desaparecer; e até mesmo aprendeu, aos poucos, a apreciar a solidão. (ZWEIG e WOLF, 2000, p. 180-181)
     Ellen, por seu lado, começou a ficar mais dependente emocionalmente de Joel, e descobriu o quanto sentia medo de tornar-se vulnerável, o que reprimira por muito tempo. A psicoterapia permitiu evidenciar um personagem de sombra que carregava sua necessidade de intimidade. O trabalho interior prosseguiu até que “descobriram juntos que o medo de fusão de Ellen era o outro lado da moeda do medo que Joel tinha de ser abandonado” (Ibid., p. 181).
     Portanto, de uma maneira simplista, pode-se dizer que o fundamento da atração sexual encontra-se no mesmo local onde ela surgiu: no interior do indivíduo, em seu inconsciente. As pessoas em geral são incompletas e têm pouca noção do quanto são divididas internamente. Elas carecem, nas imagens que possuem de suas qualidades sombrias, de atenção e amor. Quando encontram pessoas que correspondem a essas imagens de carência interior, que elas mesmas lançaram ao porão do inconsciente um dia, sentem imensa necessidade afetiva de ir ao encontro delas. Fazendo isso, suprem, ainda que temporária e ilusoriamente, a carência de aceitação e atenção nesses aspectos. Isso porque ninguém pode completar ninguém. Só está liberto para amar quem desbravou a base de sua paixão em seu próprio seio.

OBS: Peço que as pessoas que leram o texto e gostariam que ele prosseguisse com mais informações a respeito do tema, que enviem suas dúvidas nos comentários do blog. Não é necessário se identificar.

(Leia mais a respeito: "As raízes psicológicas da homofobia")