Oscar Wilde |
O romance difere da adaptação para o cinema, homônima do
personagem central e lançada em 2009, em vários elementos. Devido a essas
mudanças, a corrente interpretação difere da que se restringisse apenas à obra
de Wilde. Porém, graças a essa adaptação é possível estender a análise a vários
outros elementos da história, o que a torna mais complexa e psicologicamente
mais rica do que seria uma análise do livro. Assim, a apreciação que ora se faz
sugere como objeto principalmente a personalidade de Lord Harry – um senhor na
meia idade, particularmente ligado aos elementos sensuais – enquanto ego da
trama psíquica que se descreverá a seguir. O resumo da história fornecido é uma
tradução com modificações do texto encontrado na Wikipedia inglesa [http://en.wikipedia.org/wiki/Dorian_Gray_(2009_film)]
em 1º de novembro de 2011.
O ingênuo jovem Dorian
Gray (Barnes) chega a Londres e mergulha na agitação social da cidade. Lord Harry
Wotton (Firth), introduz Dorian nos prazeres hedonistas da cidade.
É típico que na meia idade o homem apresente uma tendência à
renovação da vida. Jung (1991a) divide a vida em duas fases: a primeira metade
se voltaria para a adaptação à sociedade, ao trabalho, à estabilização material
e construção de uma família. A segunda parte teria um acento mais espiritual,
pois comporta a decadência do corpo e de todos os ideais de estabilidade
material da primeira metade. No meio da vida existe um período de transição
entre essas duas fases, marcado por acontecimentos individuais revolucionários.
Por certo, aquele que não viveu plenamente a primeira fase de sua vida há de
revisá-la ou estendê-la para que, só então, possa viver satisfatoriamente a
segunda parte, se e quando for possível.
Harry, Dorian e Basil |
Basil tem uma personalidade totalmente oposta à de Harry. Representa
justamente um aspecto sensível, o qual é desvalorizado por este. Harry convive
de forma amigável, mas superficial, com Basil, apenas para expor seus ideais
imorais. Personificando o funcionamento do sentimento na psique humana, Basil
“pinta” um quadro totalmente favorável de Dorian, imortalizando-o. O sentimento
humano é uma função que, quando desenvolvida, lida apropriadamente com os
valores e atua como uma balança, pesando fatos e argumentos favoráveis e
desfavoráveis. O ego, devidamente assistido por uma função sentimento
amadurecida, sente o que é mais apropriado para o momento e atua de acordo com
essas circunstâncias. Dessa forma, Basil ressalta apenas o aspecto jovem, ingênuo
e promissor de Dorian. Apenas esses valores são considerados importantes: o que
resta é deixado na penumbra. A vida é rejeitada na sua totalidade e o ego
apenas reafirma a aceitação do que é confortável e cômodo. Harry não quer
sofrer ou aceitar o sofrimento como parte da existência. Essa atitude é bem
típica dos tempos atuais e também o era na Inglaterra do tempo de Wilde. De
forma semelhante, hoje em dia o consumismo, o culto aos prazeres provisórios e
à beleza prevalece em detrimento da preservação do meio-ambiente e do bem-estar
a longo prazo.
Quando o retrato é exibido,
Dorian anuncia que daria qualquer coisa para permanecer como se apresenta na
imagem, até mesmo a sua alma.
Sim, o homem dá qualquer coisa para ter consigo o conforto e
a comodidade, sem obrigações e moralismos “idiotas”. Essa é uma atitude
unilateral. Em nome dessa persona
devassa, imoral, parcial e cômoda, Harry sacrificaria até sua alma, o que há de
mais íntimo e perene em um homem. Enquanto ele queima uma pétala vermelha na
chama de uma vela, Dorian negocia sua alma pela imagem do retrato. Segundo
Chevalier et al (1990), São João da
Cruz via a flor como representante das virtudes da alma, do estado infantil,
edênico. Nas lendas celtas, a flor simboliza a instabilidade e o caráter
fugitivo da beleza e dos prazeres. Ela também representa muitas vezes a alma. Isso
é destruído na chama como um sacrifício à eternidade da beleza.
Aqui, a individualidade é esquecida e o sujeito adentra a
psique coletiva. Há uma identificação com aspectos relacionados somente a seres
mitológicos: a imortalidade e a eterna beleza, neste caso. Para Jung (1991d),
quanto maior o número de pessoas em uma comunidade, maiores os preconceitos e o
esmagamento dos aspectos individuais, devido à valorização do que é normal, do
que é cultivado e apreciado por todos. Semelhantes à perda da alma é o fascínio, o enfeitiçamento, a possessão, etc., que são fenômenos de
dissociação e repressão da consciência por conteúdos
inconscientes (JUNG, 2000). O que faz parte do inconsciente coletivo, da
humanidade, agora invade a consciência individual e esta passa a aparentar ter
maior poder, o sujeito sente-se maior e acima de todos. Ocorre uma inflação.
Mas a alma também é sacrificada de outras formas, como
ocorre a seguir.
Sibyl e Dorian |
O sacrifício da alma é efetuado na pessoa de Sybil. Como
dois opostos, Dorian, a persona em
pessoa, só poderia se sentir fortemente atraído por sua contraparte
inconsciente. Afinal, a atração só é mais forte quanto maior é a diferença: o
que é igual não tem atrativo, pois já é conhecido. Apenas o diferente pode ser
buscado por genuíno interesse, pois anuncia uma aventura, e não a rotina de
“mais do mesmo”. Casados, esses aspectos se integrariam num trabalho de
amadurecimento, e ofereceriam, como resultado, vínculos, responsabilidades e
condições que Harry não quer estabelecer. Ele quer tudo, menos laços e
comprometimentos. Bordéis são assim: prazeres sem nenhuma obrigação, a não ser
o pagamento em dinheiro. Sentimentos não são levados em consideração. Dessa
maneira a alma é descartada e abortada uma possibilidade de renovação – a
gravidez.
O irmão de Sibyl
procura Dorian, informa-o que ela estava grávida e tenta matá-lo antes de ser
contido e levado pelas autoridades. Sua tristeza inicial desaparece depois que
Lord Harry o convence de que todos os eventos são experiências simples e sem
consequência.
É claro que toda essa trama não acontece sem conflitos. No
final, além de sacrificar sua alma, o representante da culpa é condenado à
prisão hospitalar: reprimido como tudo o que não pode contrariar a decisão
consciente. Culpar-se seria uma loucura no estado psíquico unilateral
pretendido. Para que este persista, tudo o que está “na cabeça” tem que estar
de acordo e trabalhar de forma coordenada.
Sem sua alma e a culpa pela sua perda, Harry pode
tranquilamente levar o tipo de vida que bem queira, o que é retratado pelas
atitudes de Dorian. Não há mais atenção ao que se passa na cabeça ou no
coração. Não há reflexão sobre o que ocorre subjetivamente – os processos
subjetivos constituem a alma do homem. O funcionamento do sentimento (Basil)
ainda se encontra presente, mas se distancia dos eventos da vida consciente.
Certamente Harry pode não estar agindo exteriormente tal como Dorian, mas este
incita suas fantasias de tal forma que ele não pode deixar de extravasá-las de
alguma maneira.
Dorian vai para casa e
encontra sua imagem no retrato alterada e torcida. Percebe que seus desejos se
tornaram realidade. Ele permanece jovem como foi retratado na pintura, mas seus
pecados são mostrados como defeitos físicos na tela.
A promessa que a serpente faz ao casal do Éden de que ele se
tornaria imortal como Deus se concretiza quando Dorian compactua com o mal. É
interessante notar que Lúcifer cai de sua condição de anjo da luz justamente ao
querer tornar-se como seu criador. Ocorre um pecado de orgulho, de passar dos
limites, o que leva a uma cisão entre céu e inferno, entre Deus e o Diabo.
A personalidade é um processo psíquico e como todo fenômeno
não constitui um estado estático, imóvel. Tudo na natureza e na vida se
transforma. Essa condição pode demandar um longo tempo, mas nunca é indefinida.
Querer ser sempre o mesmo, sentir, perceber e pensar continuamente a mesma
coisa vai contra a natureza. Isso é embrutecer a alma, tornar pedra o caráter e
encarcerar a vida.
Com a valorização do estado de beleza e juventude eterna, ocorre
o pressentimento da presença da sombra, que se constrói aqui em uma imagem cada
vez mais ferida ao nível dos sentimentos. Mas estes podem ser deixados
facilmente de lado. Como disse Jung “Onde o amor impera, não há desejo de
poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro”. A
degradação da imagem do retrato ocorre à custa do culto ao poder. Se este fica
no pedestal, o amor se transforma em um monstro e vice-versa. Por isso não se
deve valorizar um em detrimento do outro, mas tratar os dois opostos como
componentes psíquicos inseparáveis do/de ser humano. Porém, é difícil conferir
valor igual a elementos opostos, pois isso é a culminação do desenvolvimento do
ser, que só ocorre após um longo percurso de sofrimentos, decepções e
desilusões. Entretanto, isso é o que Harry não quer.
Na mitologia grega, Narciso não consegue se relacionar com
ninguém e, ao se deparar com o próprio reflexo na água, se apaixona por ele,
procura abraçá-lo e se afoga. Em Dorian Gray (2009) ocorre algo semelhante, com
a diferença que Harry não se identifica totalmente com Dorian. Ele pressente
que, como uma moeda, atrás da “cara” limpa e perfeita existe uma “coroa” imunda
e monstruosa, um potencial para o mal.
Basil consegue
convencê-lo a ver o quadro e Dorian mata-o por ter conhecido o segredo. Este o
esquarteja e o joga no rio Tamisa.
A personificação do poder finalmente mata a capacidade de sentir.
O vínculo afetivo que Dorian tinha por Basil foi transferido para o quadro que
ganhou o poder de manter a persona
impassível, imperturbável frente aos seus atos. A condição psíquica que Dorian
representa pode ser comparada à condição de um psicopata, que aparentemente não
consegue funcionar ao nível dos sentimentos.
Basil chega a dizer a Dorian que ele não é um demônio. Então
este responde que é um deus. De fato, a pretensão da consciência não leva em
consideração os limites naturais. E são estes que fazem do ser humano quem ele
é. Alguém já disse que o homem se encontra entre o animal e Deus, e ambos não
conhecem limites conscientes. Se o animal os possui, ele não sabe. Um indivíduo
que não põe limite aos instintos é rotulado de animal. Percebe-se em Dorian uma
identificação com condições que transcendem a existência meramente humana. Ele
se supõe além do bem e do mal.
Processo alquímico da mortificatio |
A imersão do cadáver no rio lembra a operação alquímica de solutio (solução), que indica o retorno ao
estado original, a dissolução aos elementos primordiais. Essa operação está
presente em geral nas grandes transições da vida. O caso de Dorian aponta para
uma identificação com o deus Dioniso, que também está a serviço da solutio.
[...] o
dionisíaco é possesso e extático, promovendo antes a intensidade da experiência
do que o significado claro e estruturado. É um solvente dos limites e
fronteiras, trazendo vida desmesurada. Em sua forma extrema, é selvagem,
irracional, louco, extático, irrefreado. É o inimigo de todas as leis
convencionais, normas e formas estabelecidas. Está a serviço da vida e do
rejuvenescimento, e não da segurança. O fraco e imaturo pode ser destruído por
suas violentas investidas. (EDINGER, 2002, p. 84)
No filme em questão a solutio
possui as seguintes associações: sexo, orgia (Dorian é visto com várias
mulheres e envolvendo, inclusive, mãe e filha), Dioniso, vinho,
rejuvenescimento, sangue, morte e desmembramento.
Lord Harry anuncia que
não pode acompanhar Dorian na viagem que fará porque sua esposa, grávida, terá
o filho em breve. Dorian deixa Londres por muitos anos.
A possibilidade de continuar com a vida dissoluta se
desvanece. Um filho requer muita atenção e responsabilidade e, como ele mesmo
havia deixado claro para Dorian anteriormente, um filho é o começo do fim. Se
um marido ainda não assumiu o casamento, um filho poderá ajudá-lo a engajar
ainda mais na relação conjugal ou familiar. Simbolicamente o nascimento de um
filho prenuncia uma nova vida, novas possibilidades de crescimento, de
maturidade. Geralmente, quando mudanças na vida se aproximam ocorrem sonhos com
morte, esquartejamento, afogamento, etc., acompanhados ou seguidos de imagens
com nascimento ou gestação. Para que ocorram mudanças é necessário que a
condição anterior morra, acabe, ao mesmo tempo que nasça uma nova situação. O
projeto de vida materializado em Dorian vai embora para longe e é
temporariamente adiado. Adiante, percebe-se que todo o processo psíquico de
traição da própria alma e repressão do sentimento mantém a tensão na personalidade
de Harry, uma oposição constante do inconsciente à atitude da consciência. Sua
esposa se separa, mas sua filha mora na mesma casa. Dorian ainda se faz
presente com os relatos por carta de suas aventuras. A compulsão em
materializar as fantasias se distanciou, mas os pensamentos ainda pairam na
mente.
Ao retornar, na festa
de boas vindas, os convidados se admiram ao perceber que ele não envelheceu e que
ainda tem o rosto encantador.
Como os opostos Dorian/retrato não se integraram, é de se
esperar que um dia eles sejam ativados novamente. Dorian não é destruído ou
equilibrado com seu oposto, mas adiado e reprimido enquanto projeto de vida.
Apesar de estar, no mínimo, quinze ou vinte anos mais velho, Harry deve se
surpreender, assim como as pessoas próximas, ao perceber que ainda sente
fascinação pelo estilo juvenil sem limites.
Dorian e Emily |
Agora que a filha, isto é, sua nova alma, está criada, na
flor da idade, Harry se depara de novo com a possibilidade de ser como Dorian.
Mas o vínculo com sua alma agora é muito forte, afinal ele a acompanhou desde
pequenina em seu processo de maturação. Além de tudo, é mais original, pois
provém de seu próprio sangue. Emily parece referir a Helena – na mitologia
grega, a bela esposa de Menelau que, raptada por Páris, provocou a guerra de
Tróia. Segundo Jung, a alma (ou anima) do homem possui, inicialmente, as
características de Eva e, posteriormente, de Helena. Na primeira, seu caráter
anímico se restringe ao aspecto sexual, sem vínculo relacional. Na fase Helena seu Eros é ainda sexual, mas já possui
valores individuais, não meramente voltados à procriação. Devido a isso, o
conflito se agrava em Harry.
Dorian parece
genuinamente interessado em mudar sua conduta. Passa muito tempo com Emily.
Harry sente que agora poderá perder sua alma pela segunda
vez. Na primeira, fazia questão disso, pois não poderia colocar seus planos em
prática sem se cindir. Cultuava o poder muito acima do amor. Agora a situação
era diferente: o valor do par amor/poder está bem mais equilibrado. Mas ele
desconfia de seu aspecto Dorian. Não consegue ainda suportar os opostos ao mesmo
tempo. Sente medo de pender mais para um lado e que isso influencie seu
comportamento e sua situação atual. Em geral, o sentimento de que um pensamento
ou sentimento possa se concretizar é intenso. Isso envolve disciplina. É bem
mais fácil reprimir e esquecer um dos opostos a enfrentar o que se apresenta
interiormente.
As coisas se complicam
quando é confrontado com James, ainda em busca de vingança pela morte da irmã. Apesar
das tentativas de Dorian para desviar suas suspeitas ao apontar sua idade aparente,
James, no entanto, deduz a verdadeira identidade de Dorian, apenas para ser
morto em um acidente quando o persegue no metrô subterrâneo.
A culpa pela traição da própria alma ressurge e reconhece a
extrema fascinação pelo poder que Harry ainda porta. Na fuga, esse aspecto é
atropelado pelo trem do metrô – um veículo de direção rígida, que “anda na
linha”. Quando se tem que tomar uma decisão, a pressão interior pode não
encontrar alternativa e, acidentalmente, perder contato com certas partes.
O retrato/sombra de Dorian |
A pressão para que a cisão ceda se intensifica. A distância
da consciência para o inconsciente não pode continuar indefinidamente, ainda
mais com o acúmulo das ações inescrupulosas de Dorian e sua insistência em
continuá-las sem levar em consideração as outras partes da psique. A tendência
é o inconsciente ganhar cada vez mais energia em detrimento da consciência.
Dorian não acha mais graça na vida de antes. Diferencia prazer de felicidade e
começa a achar que os prazeres temporários têm um gosto próprio justamente por
não serem permanentes. Fica angustiado a maior parte do tempo.
Como Dorian planeja deixar
Londres com Emily, durante sua investigação de fotografias antigas, Lord Harry
se lembra do momento em que sugeriu a Dorian negociar com o diabo para alcançar
a eterna juventude e beleza à custa de sua alma. Isto o leva a procurar pelo
retrato que pensa conter o mistério da fonte da juventude de Dorian em sua casa.
O fato de Dorian querer fugir com Emily confirma ainda mais o
aspecto Helena associado a ela, uma vez que esta foi raptada (e algumas
versões relatam que sem resistências de sua parte). Até o momento, Harry
pressentira apenas superficialmente o quanto suas ações e fantasias na pele de
Dorian machucaram seus próprios sentimentos. Para sobreviver, a persona/Dorian, mesmo que distante,
tinha que estar de alguma forma em contato com sua sombra – a imagem monstro no
quadro, pois tinha que extrair dela sua vitalidade. Mas o próprio Harry nunca
sequer vislumbrara o segredo da imagem perfeita que construiu para si mesmo.
Para mantê-la encoberta pode ter cometido vários crimes, e para isso manteve-se
inconsciente de seus motivos e das consequências para as outras partes de sua
personalidade.
No confronto dos dois
homens, Lord Harry pergunta a Dorian o que ele é. A resposta: “Eu sou aquilo em
que você me transformou! Vivi a vida que você pregou, mas nunca ousou praticar.
Eu sou tudo que você teve medo de ser”. Enquanto Dorian tenta matá-lo, Harry consegue
atingi-lo graças ao chamado de Emily.
A resposta acima é a justificativa desta análise se basear
na personalidade de Harry como ego de toda a trama em relacionamento com outros
aspectos psíquicos. Ele parece perceber aqui o quanto se identificou com o modo
de ser de uma persona cindida com a
realidade, que desconsidera as pessoas e vários fatores de relacionamento. Apenas
o chamado de sua filha/anima consegue
prover Harry de forças para derrubar Dorian e, enfim, confrontar sua
sombra/retrato.
A angústia de Dorian perante o retrato |
Até este ponto, há apenas um contato superficial com a
sombra. O contato de Dorian com a sombra é consequente: se existe algo
positivo, deduz-se que o lado negativo esteja do outro lado. Quando Harry se dá
conta de que o reflexo de Dorian é um monstro, produz-se um efeito diferente.
Até este momento era grande a distância que separava a persona da sombra. Mas então se descobre que formam exatamente uma
e mesma coisa, diferentes apenas na perspectiva.
Harry uma vez dissera: “A vida é um momento. Faça-a queimar
sempre com a chama mais quente”. Dorian, enquanto se ausentara de Londres,
responde por carta: “Querido Harry, você me ensinou que a vida deveria se
gozada, sua luz não me cega, nem seu calor me queima. Eu sou a chama, Harry”.
Ironia do destino: Dorian é destruído justamente pelo fogo.
Na alquimia, a calcinatio
é uma operação onde o fogo é aplicado à matéria para a obtenção de certos
efeitos.
A calcinatio é efetuada no lado primitivo
da sombra, que acolhe o desejo faminto e instintivo e é contaminado pelo
inconsciente. O fogo para o processo vem da frustração desses mesmos desejos
instintivos. Uma tal provação de desejo frustrado é um aspecto característico
do processo de desenvolvimento. (EDINGER, 2002, p. 42)
Processo alquímico da calcinatio |
A calcinatio
também é um processo de secagem dos complexos inconscientes banhados em água
(emoção). Compartilhado com outra pessoa no processo de psicoterapia, o fogo
embutido no complexo torna-se atuante: os pensamentos, ações e lembranças
imersos em culpa, vergonha ou ansiedade são expressos. Liberado do complexo, o
fogo seca-o e purifica-o de sua contaminação inconsciente (EDINGER, 2002).
Sua filha vê o tumulto
e procura obter a chave para salvar Dorian. Este, ao vê-la, percebe que a ama. Lord
Harry arrasta Emily para fora da casa. Dorian decide acabar com tudo: esfaqueia
o retrato com seus anos defasados, mas seu corpo, agora tão decrépito quanto a
imagem do retrato, é antes consumido pela explosão.
Na literatura encontra-se o fato de que os vampiros não
possuem reflexo no espelho. Simbolicamente isso pode representar que eles podem
ter influência na vida das pessoas, mas no fundo constituem fantasias do
inconsciente que se desfazem ao se lançar a luz da consciência. À luz do sol
viram fumaça. No filme existe algo semelhante, pois há uma cisão em duas
partes: belo/feio, juventude/velhice, perfeito/imperfeito,
liberdade/enquadramento, saúde/doença, integridade/corrupção, etc. Pode-se
concluir que o encontro dessas qualidades opostas terá o efeito de “virar
fumaça”: a cisão se desfará e a personalidade se reconstituirá com o equilíbrio
da energia. O inconsciente não se oporá como antes, pois a atitude da
consciência não será unilateral.
Poucos meses depois, com
as cicatrizes da explosão e depois de tentar se reconciliar com Emily por
telefone, Lord Harry vai ao seu sótão, onde ele mantém o retrato agora juvenil
de Dorian.
A cicatriz constitui a memória, a lembrança de um ferimento.
Dorian agora apenas persiste no quadro, o qual foi chamuscado apenas por fora.
A imagem continua íntegra, apesar da explosão e do intenso calor do fogo. Harry
carrega a cicatriz e o quadro também. Ele diz, olhando para a imagem de Dorian:
“Coitado! Quem suportará olhar para você agora?”. Como a imagem no quadro
estava íntegra, a que Harry estava se referindo? Provavelmente ao conhecimento
do que se encontra por trás daquela imagem de ingenuidade, juventude e beleza.
Ele conseguira se desidentificar da persona doentia e salvar a filha de sua
maturidade a tempo. O que ficara é só o registro na expressão dos sentimentos
da experiência passada.
O filme e o romance tocam fundo a alma do homem
contemporâneo. É um tema arquetípico recorrente e por isso a obra se tornou um
clássico mundial. Esta interpretação traz a vivência da trama a um nível bem próximo,
de forma a se perceber claramente como todos os dias há pessoas negociando suas
almas, compactuando com valores irrefletidos e traindo seus sentimentos.
Aplicar os sentimentos pessoais à própria vida, experiênciá-los como guia de
nossa conduta é sinônimo de uma atitude “careta”, “quadrada”, tradicional, não
condizente com os valores correntes. Porém, não se fala aqui dos sentimentos
enquanto conteúdos. Esses sentimentos apontados como tradicionais realmente não
condizem com a modernidade. Mas o problema é que o sentimento enquanto função
se encontra emperrado. Ele não é mais usado para se perceber o nível de
adequação, de satisfação ou de simpatia com relação a uma conduta. Por isso o
individualismo impera. O retrato de Dorian Gray se espelha na situação do
planeta Terra, no resultado das guerras e conflitos, da fome, da insegurança,
no desfecho das vidas entregues à dependência química, etc. O homem tem que
fazer algo a respeito antes que a imagem que retrata essa situação se torne
insuportável e ganhe autonomia para equilibrar a situação, e então sem seu
controle consciente.
(Leia mais a respeito: "As raízes psicológicas da homofobia", "Nossos conflitos interiores", "Como integrar o seu dragão", "Anne Frank: a dinâmica psíquica de uma adolescente")
3 comentários:
Parabéns pela ótima interpretação. Esse romance engana, se for olhado de forma superficial parece defender um tipo de vida inconsequente;
Mas se observado com calma, ele mostra todas as consequências ruins disso :
O pagamento não se faz só com dinheiro, diz Basílio, mas também com remorsos, com sofrimentos, com... com a consciência da própria degradação. (pg. 97)
Com certeza, César. E muito mais poderia ser acrescentado a essa interpretação. Obrigado pela apreciação e pela citação.
Eu gostei do filme, mas o romance é definitivamente original, enquanto assistia o filme me fez lembrar da marca nova série chamada PennyDreadful, uma história que lida com a origem dos personagens literários clássicos como Dorian Gray e Dr. Frankenstein, a verdade é muito bom.
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