Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

Por que não consigo mudar?

O paradoxo curioso é que quando eu me aceito
como eu sou, então eu mudo.

Carl Rogers

     Essa pergunta é o primeiro passo rumo ao autoconhecimento. Para fazê-la, temos que nos dar conta de que não conseguimos nos mudar. O máximo que podemos fazer é alterar nosso comportamento de forma temporária, a custo de muito esforço e sofrimento. Por incrível que pareça, muitas pessoas não se dão conta de que não podem mudar a si mesmas. Apenas depois de muitas decepções, tentativas e erros, e mesmo assim é possível que morram sem sabê-lo. Não conseguimos modificar a nós mesmos porque somos ao mesmo tempo sujeito e objeto da mudança. Se o agente da mudança conseguisse alterar-se, já não seria agente, mas seu próprio objeto. É como se quiséssemos ser um, ainda que outro, diferente, sendo dois. Porém, se consigo perceber que nunca consegui alcançar meu objetivo, isso significa que me rendi. “Rendo-me!” - este é o início da própria aceitação.
     Então aparece um indivíduo que diz: “O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como sou, então eu mudo”. Curiosa também é como essa mudança se dá ao nos aceitarmos, pois ocorre sem esforço algum. Pelo contrário, o que requer esforço, e muito, é resistirmos ser quem somos, é querermos parecer com o ideal que almejamos, que nossos pais, parentes, amigos e a sociedade anseiam. “Aquilo a que você resiste, persiste”, afirmou Jung. É como uma mola que comprimimos contra uma parede. Podemos pressioná-la com o maior vigor que tivermos, até um certo limite. Mas com o tempo nos cansamos, e aí a mola se estende. Nessas ocasiões ficamos irritados ou explodimos, neste caso se largarmos de vez a pressão que incomoda. Porém, se aceitarmos a mola como ela é, distendida, sem nos incomodarmos em pressioná-la com o único objetivo de reprimi-la, poderemos até aproveitá-la em certas tarefas.
     Nós não temos “defeitos”; apenas possuímos características definidas que podem ser empregadas ou não adequadamente. Mas pensamos que, porque algo foi aplicado indevidamente, deve ser mau. Nada mais longe da verdade. Nada é bom ou mau, apenas é. Bom ou mau é o seu emprego, é a relação que tenho com certos aspectos ou partes de mim mesmo. Essa mesma perspectiva pode ser estendida aos outros indivíduos: não podemos rotular alguém com a característica que apresenta ou exprimiu em certo momento ou lugar. Ninguém é “idiota”, “lerdo”, “preguiçoso”, “orgulhoso”, “sem caráter”, etc. Mas em geral tomamos o todo pela parte. “Você é burro!”. É claro que todos sabem que a pessoa em questão está sendo burra naquele momento, mas não é o que a criticada recebe. Não! Ela, muitas vezes, ficará martelando internamente o quanto foi “burra”, se culpando por não ter sido quem devia. Existem muitos juízes para avaliar quem devemos ser a todo momento.
      Outra frase que gosto bastante e que amplia mais ainda o que escrevo aqui é outra afirmativa de Jung: “O que negas te subordina; o que aceitas te transforma”. É a mesma frase de Rogers dita de outra maneira, com ênfase em outros aspectos. Aqui fica mais explícita a nossa subordinação ao que negamos ou resistimos em nosso interior. Ficamos literalmente escravos do que não queremos ver; escravos e vulneráveis, justamente porque não o percebemos. Imagine você entrando em uma sala totalmente sem luz mas repleta de móveis, tapetes, enfeites e almofadas. A menos que fique totalmente quieto, irá tropeçar e se ferir, talvez até fatalmente. É o que ocorre conosco se ficamos no “escuro” em relação ao que somos. A todo momento “tropeçamos” em nós mesmos, no que somos, nas nossas funções, ideias, lembranças e sentimentos. Topamos com o inesperado porque não queremos nos dar conta dos nossos pontos cegos. Nos decepcionamos com o que nos constitui, com o que somos feitos; tudo porque esperamos demais de nós mesmos. Como Alice (no País das Maravilhas), ou somos por demais altos (e aí orgulhosos, prepotentes, arrogantes), ou por demais baixos (nos achamos aquém de nossas reais capacidades) nas diversas situações.
     Um dos interessantes efeitos da análise em psicoterapia é, com o tempo, conseguirmos “ser” cada vez mais profundamente quem realmente somos. Ocorre, no entanto, que à medida em que ficamos mais espontâneos e fluidos em ser autênticos, conseguimos lidar cada vez melhor com nossos problemas e com as pessoas que nos rodeiam. A energia que antes aplicávamos em resistir ao que somos passa a ficar livre, e com isso nos sentimos mais libertos, com maior disposição, e muito mais dinâmicos. Com isso, as amarras que impediam que nos adaptássemos melhor a certas circunstâncias e que nos comunicássemos com determinadas pessoas, se desatam. Por que isso ocorre? É que, à medida que falamos sobre nós mesmos, sobre nossos problemas, nossas relações, nossos pensamentos, emoções e sentimentos, o fazemos porque conseguimos superar a vergonha, o medo ou seja lá o que for, para nos expressarmos àquele a quem nos dirigimos. Apenas falamos daquilo que conseguimos aceitar, e na medida em que o consentimos. Se consigo expressar algo íntimo, é porque a estou assumindo como minha, e esta passa a fazer parte do que conheço como eu. 
      Por querermos ser amados, por desejarmos ser aceitos, é que não queremos ser quem somos: é o paradoxo oposto, espelho do que citei. Pois “ser eu” é, aparentemente, ser irresponsável, egoísta, sem limites, criminoso, mau, etc. Foi isso o que nos foi ensinado ou imposto. Com isso cultivamos certas “qualidades”, valorizadas coletivamente, como partes de nosso eu, em oposição aos supostos “defeitos”.
     Tudo o que se passa em nosso íntimo e não é expresso não faz parte de mim, senão apenas potencialmente. Isso porque apenas sou eu mesmo com e em referência a outra pessoa. Caso contrário esse eu está apenas “represado” e não fluindo nas relações. Poderíamos chamar essa espécie de “eu” de “eu virtual”. Não é um “eu concreto”. Ao falar de si você se exterioriza, ganha substância, torna-se um outro, não fica somente dentro de si mesmo. A partir disso, outros podem falar de você como é porque sabem em que consiste você, já que se expressou autenticamente. Eles o (re)conhecem, ainda que pouco, pelo que é, e não pelos papéis que desempenha (amizade, “filho de fulano”, profissão, etc.). Em psicologia analítica poderia dizer que a pessoa que passou pelo processo de “eu virtual” para “eu concreto” restabeleceu sua conexão com o Si-mesmo, ou o eixo ego–Si-mesmo. Ela então está arquetipicamente firmada, pois encarna o Eu Maior (aquele que é). [Quem quiser compreender melhor esse assunto poderá ler o texto “Gita – uma análise do Eu Sou”.]
     “Só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos”, poderíamos acrescentar, com Jung. Em resumo: não é querendo ser diferente, sendo outro, que vamos mudar. A mudança, a cura que mais queremos, a saúde psíquica, não vem de deixar de ser original para ser cópia, pois só podemos ser uma pessoa: aquela que somos. Fugir disso é fugir de si mesmo, é ser doente, desviante, debilitante, fraco. A fortaleza, nossa base, reside em nossa essência, na existência daquele que é.

"A montanha mágica" e a dependência química

INTRODUÇÃO

     Essa canção do Renato é algo enigmática, recheada de metáforas e símbolos. Ela expressa a vida, o caminho que o autor poderá seguir até chegar à libertação da droga. Desculpem-me as muitas referências, mas elas fazem justiça à complexidade do simbolismo da canção, que ainda duvido ter alcançado de maneira plenamente válida. Ela parece antecipar, como um oráculo, os percalços pelos quais o autor terá que passar até conseguir a libertação final. O título possui o mesmo nome que o clássico de Thomas Mann, o qual
Seria, segundo ele [Mann], uma viagem à decadência; contudo, ele também a qualificou como a busca da ‘idéia do homem, o conceito de uma humanidade futura que vivenciou o mais profundo conhecimento da doença e da morte’... (BRADBURY, 1989, apud WIKIPEDIA)
     Mann referia-se à guerra externa, à 1ª Guerra Mundial, e à interna. Portanto, espera-se que o cantor tenha o mesmo conceito de sua canção, tratando de seus conflitos interiores. Ao falar de si, ele exprime a humanidade inteira, porque a sua experiência é a vivência do homem de hoje. Procurarei penetrar tão somente no sentido psicológico da canção, sem muitas referências à vida do autor. No entanto, alerto que esta apreciação do seu simbolismo dará a conhecer ao leitor referências não somente aos meandros da vida interior de Renato, mas de sua própria intimidade.

"A sequência de Gestalts, de baixo para cima,
representa a provável evolução das figuras
humanas em desenhos de crianças.
(EDINGER, 1992, p. 29)
OS CICLOS DA VIDA PSÍQUICA

1 Sou meu próprio líder: ando em círculos
2 Me equilibro entre dias e noites
3 Minha vida toda espera algo de mim
4 Meio-sorriso, meia-lua, toda tarde

     1 O primeiro verso é um tanto difícil. Por que andar em círculos faz você ser seu próprio líder? Porque fazendo isso não se está seguindo ninguém, mas a si próprio, como o cachorro que persegue o próprio rabo. Neste caso, a causa pode ser o cão se sentir ameaçado, estar entediado, com raiva, etc. Não existe unanimidade. Mas uma coisa é certa: é uma resposta instintiva. Mas fazer círculos, ou mandalas, também é instintivo no ser humano. Essas figuras surgem espontaneamente nos sonhos, em rabiscos e nas fantasias, principalmente em situações de extremo sofrimento. Ao desenhar a si mesmas ou a outro ser humano, as crianças usam normalmente a figura redonda, o que indica como elas o percebem. "Os terapeutas infantis também descobriram que a mandala constitui, para as criancinhas, uma imagem operativa e indicativa de cura" (EDINGER, 1992, p. 30), isto é, elas instintivamente desenham símbolos redondos quando estão para restabelecer a saúde. Um amigo chegou a vencer a dependência química quando passou a pintar mandalas naturalmente, sem qualquer indicação. Só posteriormente veio a conhecer a teoria psicológica junguiana, que estuda essas manifestações.
     O "andar em círculos" também remete à situação de se estar perambulando em um lugar ermo ou floresta, sem referências, em que se acha voltando sempre ao ponto de partida, sem progredir na caminhada, totalmente perdido. O autor parece ter somente a si mesmo como próprio guia.
     Existe ainda mais um significado para "circular". Psicologicamente somos, de tempos em tempos, confrontados com um mesmo problema ou tema, ainda que em um ponto de vista diferente, por meio dos sonhos, fantasias e outras atividades mentais. Pessoas neuróticas reclamam de sempre se verem às voltas com seus "complexos" (Vide o Vocabulário): tendem a pensar e sentir sempre a mesma coisa, repetidamente. Isso ocorre até que deem atenção a eles. Nesse sentido, pode-se deduzir que Renato estaria sendo seu próprio líder com relação a rodear, contornar si mesmo, seus problemas, suas questões. Porém, estaria ele seguindo a si mesmo em um círculo sem saída, perdido, e, ao mesmo tempo, em estreito vínculo enganoso com o inconsciente, com os instintos, sem progredir muito, enquanto imerso nas drogas, nessa fase.
     É uma atividade semelhante à moagem de grãos, que se fazia na Antiguidade, por meio do moinho, ao qual era atado uma vaca, cavalo, jumento ou até mesmo um escravo. Girar o moinho é estar aprisionado a um complexo. "Quando um indivíduo se torna prisioneiro de um complexo neurótico, uma mesma ideia dá voltas sem cessar ao redor da cabeça. Ele não consegue sair do problema e não para de dizer as mesmas coisas, indefinidamente." Existe um ponto numinoso no complexo que se dá a conhecer justamente na porção mais dolorosa da neurose ou da psicose. Aí se encontra um símbolo do Si-mesmo (vide nosso Vocabulário). Por isso as pessoas ficam fascinadas e também empacadas na situação. E se se reprime os sintomas da doença, o símbolo do Si-mesmo, justamente o que pode resgatar a pessoa para a saúde psíquica, também é reprimido. "É por isso que, muitas vezes, as pessoas perpetuam seus sintomas e resistem serem curadas. Elas sabem por intuição, que o melhor delas mesmas reside lá, naquele ponto nevrálgico, e isso é algo bastante difícil de lidar" (VON FRANZ, 2014, p. 201s). Isso é muito válido para os dependentes de droga.
     Com base nesse girar em torno do mesmo tema, do mesmo assunto, nesse método natural e instintivo de a psique persistir em se fazer conhecer ao indivíduo, Jung criou o método que denominou "amplificação". Amplificar é juntar ao redor de um símbolo ou imagem desconhecida figuras ou ideias semelhantes com o objetivo de se conhecer seu significado. Estas teriam o papel de indicar o caminho para um maior entendimento da representação central. Fazer isso é aplicar a consciência em seu próprio material e torná-lo conhecido, semelhante a uma corda estendida a alguém que se encontra no fundo de um poço, e que é içada à liberdade, à claridade.
     2 Como não existe uma situação de avanço, de sucessão nesse andar, é como se dia e noite fossem um mesmo momento. Não há horário para dormir ou estar desperto. Pode ser que seja uma referência a não se saber se está sonhando ou acordado. É um estado de limbo, de nebulosidade, de incerteza, de estar confortavelmente entorpecido. A canção "Confortably Numb", de Pink Floyd, retrata essa condição. É o estado de estar "banhado" pelo inconsciente, de não se poder precisar as vontades, as ideias e os objetivos, pois no inconsciente encontramos todos os elementos opostos juntos. Por isso é difícil tomar uma direção certa, clara, já que essas são qualidades da consciência e do eu que a dirige.
     3 Sim, minha vida espera que eu seja atuante, só assim posso considerá-la de minha propriedade. Caso contrário, será consequência da vontade dos que me cercam. O autor parece expressar sua condição de estar sem direção, sem controle, e de sua vida estar aí, esperando para ser vivida, dirigida, encaminhada para um objetivo, para um sonho, uma realização.
     4 Nebuloso também é seu estado emocional: meio-sorriso. A lua não é inteira - nova ou cheia, mas crescente ou minguante, um estado de transição. Como o meio-sorriso, ela também fica aquém da completude.
     A imagem da lua crescente ocorre muitas vezes nos mitos. Refere-se ao poder emergente do feminino. Simboliza Ártemis - deusa grega da lua, dos animais selvagens e da caça, ou Diana - deusa romana da caça e da virgindade. Associa-se ao virginal, o ainda não revelado, o mistério das emoções, do amor, o poder de gerar, a renovação e as mudanças (WHITMONT, 1991, p. 50). E o feminino vincula-se, nessa nossa era patriarcal, ao inconsciente, estado e condição em que se encontra Renato. Como feminino não me refiro aqui à questão de gênero, mas a um aspecto típico muito importante que se encontra tanto no homem quanto na mulher. A agressão, a sexualidade e a necessidade de ser cuidado são características próprias do cantor no auge do seu sucesso, principalmente em sua forma compulsiva, como se pode constatar em sua autobiografia. São faculdades arquetípicas irresistíveis e fascinantes que são reprimidas, ainda difíceis de lidar, que não são intrinsecamente boas ou más, úteis ou inúteis, mas têm um sentido na nossa evolução psíquica e no nosso funcionamento orgânico. Na Antiguidade elas eram ritualizadas, do mesmo modo que o uso de drogas. Daí serem mais bem canalizadas do que nos tempos atuais, em que não possuímos e desprezamos instrumentos míticos ou religiosos em prol tão somente da racionalidade (Ibid., p. 40s).
     E isso acontece toda tarde, a parte do dia de maior atividade, em geral.

SUPORTAR A ANGÚSTIA E A DOR

5 Ficou logo o que tinha ido embora
6 Estou só um pouco cansado
7 Não sei se isto termina logo
8 Meu joelho dói
9 E não há nada a fazer agora

     5 Nossos complexos vão e voltam, nos rodeiam como a Terra orbita o Sol, em elipse - ora mais perto, ora mais distantes, mas sempre lá. Com o autoconhecimento, a tendência é que eles apresentem novas facetas ou diminuam a frequência com que se apresentam, assim que se aproximam mais do eu. São como crianças à espera da atenção dos pais: assim que são satisfeitas, tranquilizam-se. Entretanto, se não recebem a atenção devida, importunam o eu de tal maneira a induzir acidentes, brancos de memória, pensamentos e sentimentos indesejáveis, além de doenças psíquicas (depressão, ansiedade, transtorno bipolar, dependências, etc.). O eu pode fazer de tudo para livrar-se do complexo, e ele pode ceder temporariamente, mas acaba voltando.
     Um rapaz tinha pesadelos constantes com um touro que o perseguia, correndo em fuga. Os sonhos o despertavam à noite e o deixavam esgotado. Normalmente acordava assim que o animal o chifrava ou conseguia se livrar, subindo em uma árvore. Perguntei o que o animal chifrudo lembrava. Ele o associou com o Diabo. "Acaso ele o persegue de alguma maneira em sua vida?". "Sim, sinto muita vontade de ir pro bar, beber, curtir a mulherada... Mas sou casado, tenho filhos, e já decepcionei minha esposa com esse comportamento. Não quero fazer isso. Imagina perder tudo o que construí!". "E o que você faz para não pensar mais nisso?". "Eu vou me distrair, conversar, fazer alguma coisa... Não posso ficar pensando nisso." Então o alertei o quanto essa atitude era inadequada para com essas fantasias, esses pensamentos aparentemente aleatórios que rondam nossa mente. Ele deveria aceitá-los como seus, admiti-los, confirmar que possuía esses desejos. Assim, como meninos travessos, acabariam se sentindo compreendidos. Porém, isso não quer dizer que deveria obedecê-los. Teria que se dirigir a eles como a crianças, entendendo-as, mas se posicionando firmemente no sentido de não aplicá-los. Ele fica a par dos desejos, pensamentos e sentimentos, não os mandando para o porão do esquecimento, mas isso não quer dizer que concorda com eles, e que vai colocá-los em prática. A insistência em querer se distrair e não dar atenção a essas fantasias, deriva do medo em colocá-las em prática, sem consentimento prévio, sem controle. No mesmo momento em que passei a ele esse entendimento, percebi que ele o absorvera. Uma semana depois ele disse que os pesadelos haviam acabado. Na verdade, sonhou uma última vez com bois e vacas: eles se encontravam pastando tranquilamente, sem se dar conta da sua presença.
     6 Tais conteúdos costumam nos assaltar justamente quando não estamos dispostos e alertas, mas fatigados, estressados. Então, não dispomos de suficiente energia para nos opor à manifestação deles em nossa mente desperta. O inconsciente sim, nesse momento, possui mais energia do que nosso eu.
     7 E não podemos dizer quando essa situação mudará, já que, em geral, não é possível prever o que a transformará.
     8 É como se ficássemos o tempo todo de joelhos, submissos, aguardando sermos agraciados com o acontecimento feliz que porá fim à penúria que nos faz sofrer.
     9 Nosso eu não pode fazer nada, só aguardar. É nessa condição que os religiosos dizem colocar suas vidas nas mãos de Deus. Ao nível psicológico, Deus é uma força transcendente, uma espécie de Eu maior, da qual deriva nosso pequeno eu. Uma pista desse simbolismo encontra-se na própria Bíblia, quando Deus disse a Moisés: "Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós" (Êxodo 3:14). [Vide os esclarecedores textos "Gita - uma análise do 'Eu Sou'" e "A origem e a natureza do Eu"].

SER OU TER? EIS A QUESTÃO

10 Para que servem os anjos?
11 A felicidade mora aqui comigo
12 Até segunda ordem
13 Um outro agora vive minha vida
14 Sei o que ele sonha, pensa e sente
15 Não é por coincidência a minha indiferença
16 Sou uma cópia do que faço
17 O que temos é o que nos resta
18 E estamos querendo demais

     10-12 Nessa estrofe Renato exalta a droga como substituta ou até mais eficaz que os anjos. "Para que servem estes se a droga está aqui comigo e me traz felicidade?". Anjos são mensageiros de Deus. Se não servem para mais para isso, talvez outro recurso os tenha substituído.
as drogas possuem pelo menos dois efeitos típicos: um simbolizante, em que facilita a experiência simbólica, com a ativação do inconsciente; outro hipertrófico, alterando temporariamente a relação do ego com o superego. Os alucinógenos aproximam-se mais do primeiro pólo e o álcool do segundo, pois este não mostra uma relação tão direta e mais fácil com a experiência simbólica e imagética quanto aqueles. No entanto, embora as drogas alucinógenas prestem-se a uma facilitação da experiência simbólica, estas não são elaboradas, pois não estão inseridas em um contexto estruturante que acompanham e limitam o uso da droga. (ZOJA, 1992, apud RESENDE, 2009, p. 22)
     Renato, certa época, utilizava heroína, cocaína e álcool (RUSSO, 2015, p. 40-41). Como as drogas psicotrópicas "abrem" o inconsciente ao indivíduo (RESENDE, 2009, p. 39), funcionam como seu porta-voz, justamente o papel dos anjos em relação aos homens e a Deus. Logo, estes perdem sua finalidade.
     E não só isso: provocam experiências transcendentes, numinosas, que podem levar o indivíduo a vivenciar e se identificar com o divino em si, o que momentaneamente é intensamente prazeroso, mas que o retira do mundo humano (Idem). Essa é a experiência de felicidade que o dependente tem nas mãos, bastando, para isso, que faça um "passe de mágica", isto é, ingira a droga.
     13-14 A experiência contínua de ser chamado por certo nome, a construção psicológica de um centro da consciência - o eu, assim como a continuidade da memória em relação ao que ocorreu conosco, a materialização ou identificação do eu com o corpo, e por várias outras razões, acabamos criando a ilusão de que nossa personalidade possui apenas um eu. Entretanto, todos os dias experimentamos pensamentos, sentimentos, emoções, sensações e lembranças que não queremos ter. São nossos outros "eus", nossos complexos que habitam o inconsciente. Podemos percebê-los claramente nos nossos sonhos, na imagem de pessoas desconhecidas ou até conhecidas; neste caso, achamos que representam apenas as pessoas de nossas relações, do nosso cotidiano. Mas se atentarmos ao fato de que possuímos tão somente vagas impressões, imagens internas dessas pessoas, que correspondem sofregamente ao que quer que sejam na realidade, nos daremos conta que também essas imagens dizem respeito mais a nós, ou ao que essas pessoas representam para nós, do que a elas em si mesmas. Também fazem parte dos nossos complexos.
     E se somos psicológica e intensamente divididos, se rejeitamos essas nossas outras partes com forte medo ou ódio, uma droga só fará liberá-las, sem que estejamos preparados, sem que nosso eu trabalhe e interaja com esses complexos e aos poucos se transforme. É tudo muito rápido. Um outro pode passar a viver a nossa vida, com ou sem nosso consentimento. Podemos saber muito sobre esse outro ser, como conhecemos nossos pais, por exemplo. Porém, não prestamos maior atenção, como podemos fazer com os mais próximos.
     15 O dependente químico está conectado ao outro mundo, ao inconsciente, ao mundo dos mortos - ao que está morto para nós. Como não trava relações com seus outros internos, por despreparo, não desenvolve sua convivência com as pessoas de seu entorno. A indiferença o permeia tanto interna quanto externamente. Existe uma felicidade temporária devido à suspensão da tensão que a vigorosa divisão interna impõe. Só isso. A droga submerge o eu no inconsciente, colocando-o na companhia desse outro interior.
     16 O que faz acontece sem seu pleno conhecimento e controle. Daí Renato declarar ser uma cópia do que faz. Não há um eu ativo fazendo. Existe uma atuação, mas não do velho e conhecido eu. Suas ações advém dos complexos autônomos, e ele acha que é ele que faz. De qualquer forma, é mesmo o responsável, mesmo que faça sem querer, involuntariamente. Não podemos deixar de nos responsabilizar por nossos atos. No entanto, "não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero" (BÍBLIA, Epístola aos Romanos, 7, 19), disse Paulo. "Sou uma cópia do que faço"... As pessoas, e eu mesmo, me conhecem pelo que realizo. Acontecendo isso inconscientemente, sou simplesmente a xerox do que executo. O que faço pode ou não ser minha cópia, pois tenho vontade. Já o que é feito sem minhas faculdades críticas e direção, não tem um autor vivo, ativo, mas a cópia morta de um.
     17-18 Desnorteados, desorientados vivemos. Os dependentes de drogas são reflexo da nossa sociedade. Só nos resta ter, já que não podemos mais ser. Ter a droga, a TV a cabo, a Internet, o celular, a conexão - não a relação. É a esquizofrenia coletiva, explícita nas obras de arte abstratas, nas contradições flagrantes de nossas vidas, seja coletiva ou individual. O poder de consumo é o maior valor, o status. Quanto mais temos, mais queremos. O planeta está ameaçado e, com ele, a humanidade. Não conseguimos parar de consumir. O crescimento econômico é O objetivo. Não podemos melhorar o que já temos? Vamos nos render ao câncer econômico? Só nos resta ter.

MEU BEM, MEU MAL

19 Minha papoula da Índia
20 Minha flor da Tailândia
21 És o que tenho de suave
22 E me fazes tão mal

      19-22 Carinhosamente, o cantor exalta, como de sua propriedade, àquela que o serve, que é como um anjo, que está sempre à mão a obedecer à ordem de doar felicidade, que relaxa a tensão e desobstrui o acesso ao inconsciente. A droga suaviza nosso confronto com o que há de pesado, denso e cansativo em nossa alma. O sentimento de pesar corresponde à mágoa, ao desgosto, à culpa. Mas a droga coloca nossos opostos, nossos antagonismos, juntos, sem muito trabalho. O casamento é efetuado, mas os noivos são de culturas muito diferentes e não namoraram antes. Daí a droga fazer tão mal, pois pode originar, além da dependência, graves doenças mentais.
     Para Nietzsche (2010, p. 149, 40), o espírito do Pesadume, da gravidade, do fardo e da tristeza, é representado pelo Diabo. Este é aquele que desce, que coloca obstáculos, e que é melancólico, sombrio e mórbido. Esse estado é causado pela cisão na personalidade, pela violenta separação, na psique, entre o eu e o inconsciente. Como já dito, a droga cancela temporariamente essa rachadura, transformando o pesado em leve. Daí sua característica suave. Interessante é Cristo afirmar que "o meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (BÍBLIA, Mateus 11, 30). Não que o autor queira comparar conscientemente a droga a Deus, mas tal é seu poder sobre o dependente - já que este se fez uma cópia do ato de se dopar - que este atribui virtudes divinas à substância. E chega mesmo a substituí-lo.
     Quando de sua estada na clínica de recuperação, Renato se incomodava com o uso constante da palavra "Deus" pelos responsáveis pelo tratamento, pois o "Poder Superior" ainda era uma área de dúvida e incerteza (RUSSO, 2015, p. 39 e 113). Isso não quer dizer que ateus sempre se drogam. Por definição, Deus é o valor maior, psicologicamente. Se a ideia de Deus não é a mais cara a alguém, certamente outra coisa o será: um líder, a ciência, a própria religião, ou até mesmo o dinheiro.
     A dependência de drogas faz, lógico que de maneira inconsciente, as vezes de uma experiência religiosa para o homem comum. Com ela, pode-se vivenciar o numinoso, o divino. Por isso, qualquer outra experiência perde a importância e a pessoa se volta para a droga. Os deuses falam com o indivíduo sem a intermediação de um rito ou do compartilhamento da experiência com um grupo, matando paulatinamente sua relação com o mundo. "Deus é poderoso demais para ser olhado no rosto. Caímos assim na experiência que São Paulo chama de 'terrível'. Sem observá-lo de uma distância respeitosa e prudente, caímos, sem mediações, 'nas mãos do Deus vivo': a sua luz e a sua potência nos queimam." (ZOJA, 1992, p. 122). Assim, o que antes o homem experienciava no âmbito de uma religião, mito ou ritual, devidamente protegido pela estrutura das crenças e sem exposição repentina ao inconsciente, agora o faz com as drogas, quando quer, aonde quer, sem muita espera. Tudo ocorre como ao toque do botão de um controle remoto.

O MAIOR MESTRE: O ERRO

23 Existe um descontrole, que corrompe e cresce
24 Pode até ser, mas estou pronto para mais uma
25 O que é que desvirtua e ensina?
26 O que fizemos de nossas próprias vidas

     23-24 O descontrole é por conta do inconsciente, cuja natureza é não ser direcionado, governado, mas sim ser instintivo, espontâneo, isento de leis, mesmo as que controlam o espaço e o tempo. A maior expressão disso são os sonhos, nos quais podemos desaparecer de um local e aparecer em outro, as cenas mudam sem que estranhemos nada, ou nos localizamos no passado remoto ou num futuro longínquo sem que de nada desconfiemos. O problema maior é o dependente procurar se ater a essas características do inconsciente, usando a droga para isso. Ele não consegue perceber que a vida, a realidade, se passa no aqui e agora, junto ao pequeno eu referido na apreciação ao verso 9. O inconsciente tem muito poder, mas precisa que nossa personalidade consciente o canalize para o mundo externo para que possa se materializar de forma estruturada, criativa e genial. Usar os entorpecentes para se vincular ao inconsciente apenas para experienciá-lo passivamente é se perder, como o astronauta que, ao se desconectar de sua espaçonave, único remanescente da realidade terrena, é jogado ao espaço sideral. Basta lembrar do filme Gravidade, em que isso ocorre com a heroína.
     Infelizmente, o drogado se corrompe cada vez mais intensamente. Essa "corrupção" é semelhante à que acontece com certos políticos nos tempos atuais. Estes pensam, de modo equívoco, que estão no controle pleno de suas faculdade mentais. Mal sabem que estão se deixando enganar por seu lado sombrio, assumindo-o, enquanto esse aspecto se imiscui sorrateira e lentamente em suas consciências mal educadas. Um breve exemplo pode explicar melhor do que mil palavras.
     D, cuja família já havia tentado inúmeras vezes convencê-lo a deixar o vício das drogas, e desta vez prometeu que iria se empenhar em abandoná-lo, sonhou que estava para atravessar uma ponte em direção à sua mãe de criação, do outro lado. Ele e seu companheiro desconhecido foram até o meio da ponte, quando este mergulhou no rio. O sonhador então o seguiu. Percebi logo que, ao contrário de sua decisão consciente, seu inconsciente expressava que ele preferia seguir certo personagem interior estranho, provavelmente sua sombra, ao invés de ir ao encontro das expectativas maternas. Foi o que aconteceu. É essa espécie de insinuação que "corrompe e cresce" em todos nós, caso não estejamos dispostos a tomar consciência dos fatores inconscientes por trás de nossas pretensas intenções.
     Uma vez identificados com essas figuras sombrias, não nos importamos se são ou não suspeitas, pois já as assumimos como nós mesmos. Estaremos apenas prontos para seguir os impulsos correspondentes.
     25-26 Aqui Renato parece questionar no verso 25 e responder logo após, no 26. Assim, é como se ele declarasse: "o que fizemos de nossas vidas desvirtua e ensina". Nossa evolução psicológica, nossa individuação - o processo de tornar-nos quem somos em essência - depende quase inteiramente do nosso confronto com os erros do que com os acertos. São os erros que nos desvirtuam, porque nos fazem cair, nos confundir e nos enganar. Por outro lado, eles ensinam muito mais do que os acertos, uma vez que estes apenas confirmam o caminho que trilhamos, enquanto aqueles corrigem nossa rota completamente. Mas qual o papel desses dois versos no contexto da presente estrofe?
     Esse desenvolvimento que citei apenas toma lugar com o lento processo de "prega/desprega", isto é, de se identificar e se desidentificar com as figuras e habilidades que compõem nossa psique. Edinger (1992, p. 24ss) descreve esses ciclos em termos de reunião/separação ou inflação/alienação do eu com a totalidade da psique, cuja representação é chamada Si-mesmo. Nesse processo, o eu aprende a diferenciar os conteúdos da psique da consciência em si, e a perceber que não é nada e coisa alguma é sua, de tudo o que manifesta em seu ser. Tudo pertence a algo que transcende nossos limites estreitos de conhecimento - o Si-mesmo. (Aqui remeto novamente o leitor aos textos que indiquei no comentário ao verso 9)

CONSCIÊNCIA E OPOSIÇÃO

27 O mecanismo da amizade,
28 A matemática dos amantes
29 Agora só artesanato:
30 O resto são escombros

     27-30 O que há de comum na amizade e nos amantes, e que é ao mesmo tempo mecanismo e matemática? Ora, amizade e amor são sentimentos, mas mecanismo e matemática se referem ao raciocínio, ao encadeamento de ideias. Como costuma fazer em várias outras letras, aqui o cantor parece tentar unir opostos: a lógica à emoção, o estudo intelectual ao sentimento. Da mesma forma, ele pode estar aludindo ao conflito de elementos da psique que somam, subtraem, dividem e multiplicam, já que o "amor sem conflitos torna-se prontamente tédio e indiferença, porque falta o desafio necessário ao crescimento. O amor não é a paz estática, mas o ativo envolvimento com e contra o outro" (WHITMONT, 1991, p. 43). Também pode estar se referindo à criação de um novo elemento, produto da amizade e do amor, resultado matemático e mecânico, totalmente esperado - o vínculo, o relacionamento. Assim, se identificando e se separando, apelando ao raciocínio e à emoção, tomamos parte dos dois lados sem pertencer a nenhum. É uma síntese completamente criativa, daí o artesanato. O que foge disso é entulho, restos não aproveitáveis. Essa espécie de fecundidade, criadora de relacionamentos intra a extrapessoais, é a chave para a cura da dependência psíquica da droga. (Leia mais a respeito, clicando aqui)

MORRER PARA VIVER

31 Mas, é claro que não vamos lhe fazer mal
32 Nem é por isso que estamos aqui
33 Cada criança com seu próprio canivete
34 Cada líder com seu próprio 38

     31-34 As contradições voltam nesta estrofe. Renato muda o discurso da primeira pessoa do singular para a primeira do plural. A psicologia aqui é coletiva. Um grupo se dirige ao cantor, afirmando que não fará nada de mal. Não é para isso que estão ali. Mas para que então, se cada criança está com um canivete e cada líder com um 38? O grupo está armado para fazer o bem ao indivíduo? Esse bem seria a morte? É como se o autor se sentisse ameaçado pelo inconsciente coletivo, na forma de seus vários complexos. O eu de Renato deve morrer para que possa nascer outro.
     As fantasias de morte predominam em pessoas de todas as idades. Elas expressam a necessidade de se provocar mudanças radicais na vida, justamente num momento em que o eu se sente bloqueado contra um mundo percebido como inflexível (MINDELL, 1989, p. 74).
     Tudo indica que o cantor chegou a um limite nesse momento. É o ponto de mutação que é confirmado na última estrofe. Ele deve se transformar, deixar morrer o que não deve mais continuar para o bem de toda a personalidade. Armas normalmente simbolizam conflitos, os quais foram já pontuados anteriormente. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1990, p. 81), o canivete e o revólver são amas associadas ao elemento fogo. Este, por sua vez, quando presente nos sonhos,  de maneira destrutiva, tem sentido de perigo. Costuma apontar para paixões destrutivas, dependência sexual ou ideias fortes e fanáticas (HARNISCH, 1999, p. 69). Ao que tudo indica, essas emoções intimidam Renato para seu próprio bem. Afinal, ele corria risco de saúde física e psíquica, de destruir seus relacionamentos mais íntimos e sua carreira profissional.
     A figura da criança surge da tensão entre os contrários (JUNG, 1990b, §59). Reflete a experiência de algo novo na vida, que é sentido pelo cantor como ameaçador. A maioria das pessoas se sente em perigo frente ao novo e também estranho, pois este exige toda uma nova adaptação, demandando trabalho duro e desconforto iniciais. O conhecido é bem mais cômodo: é nossa zona de conforto. Mudanças são muito trabalhosas.
     Os versos 33 e 34 levam a crer que indicam uma transição da criança armada de canivete para o líder com o 38. A criança usa apenas um canivete, que não deixa de ser perigoso, mas é muito menos letal que o revólver nas mãos de um adulto. Essa situação lembra o verso 23: "Existe um descontrole, que corrompe e cresce". Aqui a ameaça é bem maior do que em versos anteriores. É o auge do drama apreciado até este momento.

O PONTO DE MUTAÇÃO

35 Minha papoula da Índia
36 Minha flor da Tailândia
37 Chega, vou mudar a minha vida
38 Deixa o copo encher até a borda
39 Que eu quero um dia de sol
40 E um (Num) copo d'água

      35-36 Neste ponto volta a apreciação dos versos 19 ao 22, com toda a simbologia do pesaroso, do Diabo, que também é um ser ígneo, referência ao fogo dos versos anteriores. O ciclo se repete.
     37-38 A tensão alcança um pico, provocando uma decisão por parte do eu. Finalmente Renato deve resolver mudar consciente e ponderadamente. Depois de vários ciclos de repetição de situações, de resistências, de intensificação da energia do inconsciente, com crescente intimidação. O copo enche até a borda e não há outra saída. Ao contrário do que expressa no verso 24, ele agora não está pronto pra mais uma: chega! O cantor se cansou e esgotou todas as suas energias no modo como levava sua vida. Precisou ampliar ou amplificar sua vivência com as drogas ao limite de suas forças para, talvez, perceber-se mais nitidamente. Tal era a distância que se encontrava de si mesmo, que não conseguia se conectar com o que precisava experienciar. Necessitava encarar a morte, o fim de tudo, o ponto de transformação. Também isso foi o que buscou Thomas Mann ao escrever a obra homônima.
     É interessante que Renato cite o copo duas vezes, nos versos 38 e 40. No 38, não deixa explícito o conteúdo do copo; certamente se refere às experiências com entorpecentes em confronto com seu estado emocional, de saúde, familiar e profissional. Deixa o copo ficar pleno, chegar ao fundo do poço, que aí só resta transbordar. Esse estado em que o copo fica cheio é semelhante ao conceito de amplificação em psicologia. Amplificar as sensações de um sintoma, associar ideias a um símbolo ou uma imagem, até que consigamos vislumbrar um raio de luz, um sentido para o desconhecido. Corresponde à ideia homeopática de que o “veneno” cura a si mesmo. A vacina segue o mesmo princípio, com a aplicação do soro, que é o veneno enfraquecido. A terapia de Carl Rogers também, ao descobrir que a simples repetição do que alguém diz aumenta imensamente sua conscientização. Na interpretação de sonhos, se se repetir várias vezes um certo sonho ao sonhador, este com frequência passa a entender espontaneamente vários aspectos da mensagem onírica. O terapeuta da Gestalt amplifica o sonho quando pede que o sonhador imagine se tornar uma figura de seu sonho. Jung amplifica os sonhos por meio de associações pessoais, da mitologia, da imaginação e de informações científicas (MINDELL, 1989, p. 80). Deixar o copo encher, amplificar o que se vivencia até que se transborde, até que haja mais que uma simples satisfação: a compreensão, a iluminação.
     O simbolismo do copo é o mesmo da taça e do cálice. O Graal, a taça que recolheu o sangue de Cristo, por exemplo, corresponde ao coração. Por isso o naipe de copas (copo) é um coração. Portanto, os cálices que contém o corpo e o sangue de Cristo possuem sentido análogo ao Graal. As taças, destinadas ao rito da comunhão, que realiza a participação virtual no sacrifício e na união extática, pode ser encontrado em diversas tradições e na China antiga. É um rito de agregação, de união no sangue, como a que ocorre nas sociedades secretas. Beber da mesma taça, ou trocá-las, é um rito de casamento praticado no extremo oriente e no Japão, respectivamente (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1990, p. 858s).
     A taça representa também o destino do homem, na Bíblia. "O homem recebe da mão de Deus o seu destino como uma copa ou como contido numa copa". Veja-se as expressões: "taça transbordante de bênçãos" (Salmos, 25, 5); "taça do fogo do castigo divino" (Salmos, 11, 6); ou o "cálice do vinho do furor da sua ira" (Apocalipse, 16, 19). O instrumento que Deus se serve para castigar é comparável a uma taça (Jeremias, 51, 7; Zacarias 12, 2). Jesus fala do cálice que estava para beber (Mateus 20, 22s) e pede que o Pai o afaste (Mateus 26, 39), corroborando o sentido de destino que Deus propõe (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1990, p. 858s).
     Assim, é como se o cantor falasse do copo encher até a borda tanto no sentido da comunhão com a "minha" droga, de se enfastiar, se fartar, de estar satisfeito com a experiência e o sofrimento vividos na dependência, como no aspecto de haver completado seu destino com relação ao seu período como drogadicto.
     39-40 Aqui termina o drama descrito ao longo da letra da canção. O dia de sol que Renato quer é uma situação similar à que já aludi na apreciação da primeira estrofe, quando escrevi que o autoconhecimento é semelhante a uma corda estendida a um indivíduo no fundo de um poço escuro e fechado, na qual ele pode se içar à liberdade e à claridade.
        De acordo com Mindell (1989, p. 86), luz e água estão associadas a experiências de cura. A água indica energia livre e fluente, que limpa o corpo destravando o egotismo e as tensões consequentes. A luz simboliza a consciência. A luz do sol tem natureza divina e cósmica, enquanto a que emana de lâmpada, lamparina, lampiões, etc., representa a consciência à mão, sob controle do ser humano. Portanto, o autor deseja alcançar o estado de um dia de consciência plena e sublime, em conjunção com a água.
     Os sonhos de água frequentemente indicam experiências de renascimento (basta lembrar que o batismo era largamente usado nas escolas iniciáticas da antiguidade e também no Cristianismo, com esse significado). Na Índia acredita-se que a falta de fluidez é responsável pela artrite, a impotência e a pele seca. Na Antiguidade existiam poços de cura na Europa, associados aos espíritos pagãos da água e aos deuses antigos que cria-se ter a propriedade de curar crianças doentes, renovar forças, curar úlceras e artrites. Considerando-se que as propriedades da água, as doenças que cura devem caracterizar a rigidez. Ela é medicamento contra o enrijecimento da intuição, da mobilidade física e do sentimento (Ibid., p. 86-89). Segundo essas menções, a condição do cantor é de rigidez, de unilateralidade que resulta na dependência de entorpecentes.
     Existe uma contradição quanto a se o último verso escreve "E um copo d'água" ou "Num copo d'água". O primeiro caso possui uma conotação mais positiva, denotando que o cantor deseja as duas condições simbolizadas pela água e pelo sol. O segundo caso pode levar a uma previsão mais sombria. É como se a consciência desejada tivesse que estar imersa em um copo d'água. E a água também simboliza as emoções, o inconsciente. Assim, todo o drama vivido até este ponto parece voltar ao início, e se transforma em um ciclo, uma repetição. Não seria uma espiral ascendente que, apesar de repetir os ciclos, o faz em níveis cada vez mais elevados, mais de acordo com o primeiro caso. Portanto, o ciclo da segunda hipótese do verso só terminaria com a morte, o que de fato ocorreu.

MÁGICA OU SAGRADA? - CONCLUSÃO

     Gostaria apenas de complementar o significado de "A Montanha Mágica", já aludida na introdução. A montanha figura, juntamente com a coluna, a escada, a árvore e o cipó, como "eixo do mundo (Axis Mundi), centro ou umbigo do mundo, que permite a passagem de uma região cósmica a outra (do céu à terra e vice-versa; da terra ao mundo inferior). Exemplos desse tipo de montanha é "Meru, na Índia, de Haraberezaiti, no Irã, da montanha mítica 'Monte dos Países', na Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava aliás 'Umbigo da Terra'." A montanha toca o céu e marca o ponto mais alto do mundo. Os templos são réplicas da montanha cósmica, e por isso são também ligação entre o céu e a terra. Testemunhos disso são os nomes dos templos babilônicos: "Monte da Casa", "Casa do Monte de todas as Terras", "Monte das Tempestades", "Ligação entre o Céu e a Terra", etc. O Zigurate era a Montanha Cósmica: sete andares eram os céus planetários - subindo-os, o sacerdote ascendia ao cume do Universo. O templo de Barabudur, em Java, considerado uma montanha artificial, também pode ser explicado por esse simbolismo. "Sua escalada equivale a uma viagem extática ao Centro do Mundo; atingindo o terraço superior, o peregrino realiza a ruptura de nível; penetra numa 'região pura', que transcende o mundo profano" (ELIADE, 1992, p. 25-26).
     A montanha exprime estabilidade, imutabilidade e, às vezes, até mesmo a pureza. Segundo os sumérios ela é a massa primordial, o Ovo do mundo. É representada graficamente pelo triângulo reto. Ela é o lugar dos deuses e sua ascensão é um meio de entrar em contato com a Divindade, um retorno ao Princípio.
Moisés recebeu as Tábuas da Lei no pico do Sinai; [...] os imortais taoistas elevavam-se ao Céu do pico de uma montanha e as mensagens destinadas ao Céu eram colocadas nesse pico. As montanhsa axiais mais conhecidas são o Meru, para a Índia, o Kuen-luen, para a China [...]; o Fuji-Yama, cua ascensão ritual necessita de uma purificação anterior; o Olimpo grego; o Alborj persa; a montanha dos países na Mesopotâmia; o Garizim samaritano; o Moriah maçônico; o Elbruz e o Thabor (de uma raiz que significa umbigo); a ka'ba de Meca; o Montsalvat do Graal e a Montanha de Qaf do Islã; a montanha branca celta; o Potala tibetano, etc. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1990, p. 616).
     Entretanto, "A Montanha Mágica" de Renato e de Mann contrapõe-se à Montanha Cósmica ou Sagrada das tradições religiosas e mitológicas, no sentido de que "mágico" também tem conotação de ilusão e prestidigitação. Ora, como aludido anteriormente, há muito tempo atrás as drogas serviam à espiritualidade e conduziam a consciência por meio de rituais e crenças bem estruturados. Nesse sentido, seu uso equivalia à uma escalada "santa" e "venerável". Já o uso que se faz atualmente delas é análogo à apresentação de um mágico, à tirada de um pombo da cartola, uma vez que serve a um logro da alma, a um devaneio sem sentido, como uma anestesia à percepção da cruel realidade, um dopping da vida. O drogado serve à morte e torna-se um vivo-morto, um zumbi que, apesar de cultuar Hades, pretende adentrar o Olimpo; encontra-se literalmente no inferno, mas sonha com o céu. A mágica reflete a noção atual de sagrado como espetáculo, como show de efeitos especiais e pirotécnicos. É a decadência do divino no homem e sua compensação no culto à matéria pela ciência.
     Renato Russo, a seu modo especial, expressou necessidades humanas essenciais. Usou, para isso, de figuras poéticas, algumas vezes incompreensíveis, como nesta canção. Suas letras representam sua vida e a de seu povo. Se muitas pessoas não passam pelo mundo das drogas, como ele, isso não quer dizer que não sofrem das mesmas angústias e problemas, das mesmas questões, de preconceitos similares. O problema é, a par de todas essas condições, que resposta podemos dar ao mundo. Ele respondeu com suas criações, que o transformaram em um mito para várias gerações à frente. Renato foi um gênio criativo brasileiro de letras e melodias, ferramentas de consciência.





REFERÊNCIAS

BÍBLIA. Português. A bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Paulinas, 1985.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1992.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
HARNISCH, Günter. Léxico dos sonhos – mais de 1500 símbolos oníricos de A a Z interpretados à luz da psicologia. Petrópolis: Vozes, 1999.
JUNG, Carl G. Aion – Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1990b. vol. IX/2.
MINDELL, Arnold. O corpo onírico: o papel do corpo no revelar do si-mesmo. São Paulo: Summus, 1989.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
RESENDE, Charles Alberto. A intuição e a sensação em dependentes de drogas na perspectiva da psicologia analítica. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Departamento de Psicologia, Universidade de Taubaté, Taubaté, 2009. Disponível em <http://apsiqueeomundo.blogspot.com/2010/08/intuicao-e-sensacao-em-dependentes-de.html> Acesso em: 14 maio 2016, 20:00:00.
RUSSO, Renato. Só por hoje e para sempre. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 
VON FRANZ, Marie-Louise. O asno de ouro: o romance de Lúcio Apuleio na perspectiva da psicologia analítica junguiana.  1. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
WHITMONT, Edward C. O retorno da deusa. 1. ed. São Paulo: Summus, 1991.
WIKIPEDIA. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Montanha_Mágica>. Acesso em 4 jun. 16.

O Gênesis e o desenvolvimento psicológico do homem (Parte 2)

(Leia a Parte 1)

A NOMEAÇÃO DA LUZ E DAS TREVAS, A CRIAÇÃO DO MUNDO E DO PARAÍSO

     O Paraíso é um estado em que todas as nossas necessidades físicas e psicológicas são prontamente satisfeitas. É o que normalmente ocorre no relacionamento mãe/bebê. A criança vive no paraíso provido pelos pais. Com acesso livre ao inconsciente coletivo, a criança contata principalmente o arquétipo do Si-mesmo, totalidade e potencialidade do ser humano, princípio de organização e gerenciamento da personalidade, simbolizado por além de imagens divinas, figuras espirituais, certas formas geométricas e objetos mágicos. Como não diferencia precisamente o que se encontra em seu interior do que se localiza exteriormente, percebe seus pais e o Si-mesmo como um mesmo ser, responsáveis por prover e gerenciar sua vida física e afetiva. Assim, seus pais são vivenciados como se deuses fossem – tudo podem e tudo conhecem. 
     Percebemos que o Gênesis descreve o ato de criação por Deus como efetuado pela palavra, pela separação de opostos e pela nomeação. O quadro abaixo ilustra claramente isso.

DIA
PALAVRA
SEPARAÇÃO
NOMEAÇÃO
Haja luz!”
Luz e trevas
Dia e noite
Haja um firmamento...”
Águas das águas
Céu
...que apareça o continente.”
Continente e águas
Terra e mares
Que haja luzeiros...”
Luz e trevas
Grande luzeiro (Sol), pequeno luzeiro (Lua) e estrelas

    Quando conseguimos exprimir em palavras algo que sentimos, mas que ainda não havíamos conseguido expressar, nós avançamos na consciência desse conteúdo. É como se criássemos algo, como se alguma coisa ainda inexistente fosse criada. Em um processo de psicoterapia ou qualquer outro em que surgem insights, isso é facilmente percebido. No processo, descobrimos o que nos era inconsciente e conseguimos nomeá-lo, separamos a luz recém-percebida das trevas anteriores. Algo semelhante ocorreu após o nosso nascimento, e também com o homem primitivo, à medida que conseguia articular mais palavras e desenvolver sua consciência, mas isso de maneira muito mais lenta. Os passos da criação da Terra por Deus parece refletir esse desenvolvimento da consciência humana. É como se Deus, seu reflexo em nós, isto é, o Si-mesmo, estivesse criando a luz, separando-a das trevas, dividindo fatores psíquicos e nomeando fatores em nós que eram projetados no mundo externo. É a divisão que torna possível o conhecimento, pois lançar luz torna possível fazer com que as sombras realcem os objetos para que possamos vê-los. Tenhamos somente luz, ou somente sombras, e seremos ofuscados ou vendados.
     Nomear objetos e pessoas é um processo importante para se lidar com o outro interna ou externamente. Como “outro” designo não apenas objetos, pessoas, animais, acontecimentos e atividades do mundo exterior, mas também sentimentos, pensamentos, sensações, insights e lembranças que surgem internamente em nossa consciência. A nomeação de animais é uma das primeiras ações de Adão que exige um mínimo de consciência, e é a base da abstração, da capacidade de se pensar sobre algo sem sua presença imediata. Nomeando, o Eu inicia o processo de sua separação do outro com quem interage, e de sua definição. Nessa condição inicial, onde a consciência ainda é muito precária, não possuímos ainda a carga da responsabilidade que o conhecimento nos dispensa. De início, não é nem Adão que dá nome, mas o próprio Deus. Isso pode refletir o estágio em que o homem primitivo e a criança atribuem nomes de maneira espontânea, não intencional. Não é o Eu que faz, mas algo no inconsciente, o seu modelador, seu projetor, o Si-mesmo.

EVA COMO COSTELA DE ADÃO

     Como Eva é criada a partir de uma costela de Adão, pode-se considerá-lo como possuindo ambos os sexos, um andrógino, para uma interpretação que faça justiça a ambos os sexos e princípios. Uma interpretação mais literal tenderá a interpretar a Bíblia tão somente do ponto de vista masculino, tornando a mulher um simples apêndice do homem.
     É interessante que, nesse ponto, a Bíblia (Gênesis 2: 23-24) estabelece uma correspondência entre a criação da mulher a partir de Adão e o casamento, uma vez que Eva é agora osso dos seus ossos e carne da sua carne. Mais adiante, o primeiro livro da Bíblia sintetiza a criação do homem:
1 Eis o livro da descendência de Adão: No dia em que Deus criou Adão, ele o fez à semelhança de Deus. 2 Homem e mulher ele os criou, abençoou-os e lhes deu o nome de "Homem", no dia em que foram criados. BÍBLIA (Gênesis 5)
     No dia em que Deus fez Adão, este era à semelhança de Deus, e homem e mulher Deus os criou. A Bíblia aqui se refere a Adão como duplo, homem e mulher. Logo, Deus não é masculino, nem feminino, mas contém os dois princípios. Além disso, deu a ambos o nome de “Homem”, ou seja, denominou-os “humanos”. Campbell (2008, p. 65) afirma que Adão, em hebraico, significa “terra”, provavelmente uma referência à sua origem, o barro. 
     A palavra “costela” (de onde Eva foi gerada) é uma tradução de Lutero da palavra judaica “tselah”, cuja raiz “tsel” significa “sombra” (DAHLKE e DETHLEFSEN, 2002, p. 61). Assim como psicologicamente o Eu possui uma sombra, que é a oposição dos seus atributos enraizada na sua própria origem (ver o texto “A origem e a natureza do Eu”), o homem, na perspectiva da nossa cultura patriarcal, possui uma figura sombria, também estabelecida na sua criação – a mulher. Na verdade, convém antes afirmar que um é a sombra do outro. Mulher e homem formam um indivíduo original completo, cujos aspectos distintos são assim conhecidos. Na mitologia grega podemos encontrar uma divisão semelhante e esclarecedora.

O MITO DO ANDRÓGINO

     Brandão (1991, p. 34), se referindo a Platão, em sua obra “O Banquete”, explana que “andróguynos” (andrógino), é uma palavra composta de “andrós”, macho, "homem viril", e de “guyné”, fêmea, mulher. Segundo ele, em tempos antigos, a natureza do homem era diferente da que se vê hoje. Haviam três sexos: o masculino, o feminino e um terceiro, composto dos dois primeiros, da natureza de ambos. 
     Este ser especial formava um só elemento, com dorso e flancos circulares: possuía quatro mãos e quatro pernas; duas faces idênticas sobre um pescoço redondo; uma só cabeça para estas duas faces colocadas opostamente; era dotado de quatro orelhas, de dois órgãos dos dois sexos e o restante na mesma proporção. Para Platão, os três sexos se justificam pelo fato de o masculino proceder de Hélio (Sol); o feminino, de Géia (Terra) e o que provém dos dois origina-se de Selene (Lua), "a qual participa de ambos". (PLATÃO apud BRANDÃO, 1991, p. 34)
     Esses seres esféricos tornaram-se robustos e audaciosos, e ameaçaram os deuses, tentando escalar o Olimpo. Face ao perigo iminente, Zeus cortou o andrógino em duas partes, e mandou seu filho Apolo curar as feridas e virar o rosto e o pescoço para o lado cindido, para que o ser humano, observando o umbigo, a marca do corte, se tornasse mais humilde, e, em consequência, menos perigoso. Assim, Zeus não só o enfraqueceu, pois passou a caminhar sobre duas pernas apenas, mas também tornou-o carente, porque as metades passaram a se buscar na outra oposta, numa ânsia nunca mais adormecida de se reunir para sempre. Essa seria, segundo Platão, a origem do amor, que tenta recompor a natureza primitiva, restaurando a antiga unidade. “É conveniente, porém, acrescentar que não havia tão-somente o andrógino, mas também duas outras 'fusões', igualmente separadas por Zeus, a saber, de mulher com mulher e de homem com homem, o que explica, no discurso de Aristófanes, o homossexualismo masculino e feminino.” (BRANDÃO, 1991, 34-35).

A SEDUÇÃO DA SERPENTE

     Para um estudo simbólico mais aprofundado desse trecho, convém citar todo o texto referente ao assunto:
A queda — 1 A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: "Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?" 2 A mulher respondeu à serpente: "Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. 3 Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte." 4 A serpente disse então à mulher: "Não, não morrereis! 5 Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal." 6 A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava e ele comeu. 7 Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram. (BÍBLIA, 1985, Gênesis 3)
     Curiosamente o sistema nervoso é semelhante a uma árvore com muitos galhos e ramificações. Podemos dividir o sistema nervoso humano em duas formas principais, para os fins propostos deste texto: o voluntário, compreendido pelo sistema nervoso central (SNC), e o involuntário, o sistema nervoso autônomo (SNA). Este é responsável por todas as funções involuntárias do corpo, que envolvem acionamento automático dos órgãos, sistemas e hormônios, para manutenção da vida. O SNC promove o contato do corpo com o meio externo, sendo responsável pelo conhecimento, que implica, entre outras coisas, os cinco sentidos e outras impressões sensoriais. Esses sistemas nervosos são análogos à árvore do conhecimento do bem e do mal e à árvore da vida, respectivamente. 
     A primeira envolve os opostos bem e mal. Tomando do seu fruto passa-se a se conhecer uma parte em função da outra, pois uma se distingue em relação à oposta. Com isso, o ser humano fica apto a reconhecer a própria polaridade corporal: homem e mulher, vindo a cobrir sua vergonha. Toma-se partido do bem ou do mal em função do conceito que se tem de cada um, que nunca exclui o outro. Esse pode ser mais um motivo de a árvore se encontrar no meio, uma vez que não se localiza, no Paraíso, em nenhum ponto lateral, mas em lugar neutro.
     Outro símbolo análogo à árvore proibida é a espada flamejante que impede o retorno ao Jardim do Éden. A espada e outros instrumentos cortantes que separam algo em dois são símbolos da análise, da discriminação, características da consciência. Esse aspecto reflete uma verdade psicológica: ao tomarmos conhecimento de algo, a inconsciência disso desaparece para sempre. A espada de fogo representa o conhecimento adquirido ao se comer do fruto da árvore, que também impede a volta ao paraíso da ignorância. O aumento do conhecimento traz inúmeras vantagens, mas é compensado por experiências dolorosas, sem as quais, talvez, não aprenderíamos. Esse é o significado dos ritos de iniciação, que deixam queimaduras e cicatrizes com o intuito de marcar a transposição para um estado de consciência mais elevado (KLUGER, 1999).
     Existe aqui a proibição de se comer da árvore que se encontra no meio do jardim. Nota-se que todas as demais árvores rodeavam a árvore proibida, localizada no centro. Essa situação dá uma conotação de importância especial ao vegetal. Seu fruto é proibido. Porém, ela se encontra justamente no centro e não em um canto qualquer, escondida. Estabelece-se às claras, no caminho do cruzamento de um lado para outro do Éden. É uma situação de evidência, como se o Criador também quisesse induzir o casal à “queda”. Circunstância semelhante ocorreu quando Moisés tentava tirar os filhos de Israel do Egito e Deus endurecia o coração do Faraó para que não deixasse o povo partir (BÍBLIA, 1985, Êxodo 4, 21). Com Jó não foi diferente, pois o fez sofrer, sabendo que ele nunca o trairia. Apesar de os cristãos responsabilizarem o Diabo por tudo de mau que ocorre na vida, também sabem que o “inimigo” só possui poder na medida da permissão oferecida por Deus. Portanto, pode-se depreender disso que o homem tem uma ideia contraditória de Deus: este quer e ao mesmo tempo não quer que o homem o desobedeça. Por um lado o incentiva ao conhecimento; por outro, lamenta essa ousadia, que o homem queira ser como Ele. Não poderia ser diferente, uma vez que Deus reflete a totalidade de todos os aspectos encontrados no homem, já que este foi feito à sua imagem.

O PAPEL DO PECADO NO DESENVOLVIMENTO

     Esse conceito de Deus como portador dos opostos bem e mal, como sujeito paradoxo, além de qualquer categoria, surgiu-me com um dos primeiros sonhos de que me lembro.
Estou em um quarto de hospital deitado numa cama e coberto com lençol branco. Jesus Cristo é meu médico. O Diabo entra no quarto e Jesus, com um gesto de mão (palma da mão direita para cima, apontando para o Diabo, à sua esquerda), passa-me aos seus cuidados de agora em diante. Parece que Cristo cansou de cuidar de mim (ou esgotou seus recursos). Acordo sobressaltado.
     Assinala-se que à época do sonho eu era católico, tinha aproximadamente sete anos e frequentava a Igreja Católica. Não me lembro dos acontecimentos da época, nem de minha situação afetiva. À primeira vista, pode parecer a um observador menos atento que eu tivesse cometido alguma travessura e a culpa me apareceu como Cristo desistindo de mim. Entretanto, os sonhos não são tão simples de interpretar, e devem ser levados em consideração como um todo. Sou retratado como um doente necessitado de cura, e Jesus, apesar de possuidor de grande poder, não consegue curar-me, e se encontra esgotado das tentativas que efetuara nesse sentido. E, por isso, me encaminha a outro “médico”, o Diabo, como se este tivesse algum tipo de poder diferente daquele atribuído a si. Parece representar uma espécie de “queda” do paraíso da infância, um marco em uma fase do meu amadurecimento.
     De certa forma, o sonho pareceu dizer-me que não pecar é ser doente, incompleto e corruptível. Quando não conhecemos o pecado não sabemos o que ele é, nem as suas consequências. Daí, quando inocentes, sermos também muito fáceis de cair em tentação, de errar. A salvação e a cura ocorrem somente depois do pecado e não antes. Nesse sentido, o sonho parece incentivar o pecado, pois até aquele ponto eu fora tratado apenas por Cristo, sem querer abandoná-lo. No entanto, dessa maneira, o desenvolvimento da psique, a individuação, não se inicia. É com o reconhecimento do erro que nos desenvolvemos. Digno de nota é o fato de Cristo ser censurado pelos fariseus quanto a ficar em companhia de pecadores e ele advertir: "17 […] 'Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os doentes. Eu não vim chamar justos, mas pecadores'" (BÍBLIA, 1985, Marcos 2). 
     Em outra ocasião, ele conta a parábola do fariseu e do publicano: 
10 'Dois homens subiram ao Templo para orar; um era fariseu e o outro publicano. 11 O fariseu, de pé, orava interiormente deste modo: 'Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens, ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano; 12 jejuo duas vezes por semana, pago o dízimo de todos os meus rendimentos'. 13 O publicano, mantendo-se à distância, não ousava sequer levantar os olhos para o céu, mas batia no peito dizendo: 'Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!' 14 Eu vos digo que este último desceu para casa justificado, o outro não. Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. 
     Jesus parece, aqui, recomendar a admissão do pecado, mesmo que a pessoa se ache limpa de qualquer mancha. Essa atitude é a mais adequada espiritual e também psicologicamente. Admitindo a possibilidade de que possa falhar, mesmo como os criminosos, nos mantemos vigilantes, ao contrário daqueles que se sentem muito seguros indevidamente, que caem em presunção, orgulho e altivez impróprios. O inconsciente, para equilibrar o sistema psíquico, induz aos erros mais inesperados, provocando a irritação e a ira, sintomas de que o sujeito se percebe em estatura muito acima da devida, donde a psicologia cunha o termo “inflação”.
     Como Cristo no meu sonho, Deus parece passar o casal do Éden aos cuidados da serpente, ou deixá-los à mercê da tentação. A serpente diz que “Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal”. Ou seja, ser perito no bem e no mal é ser como deus, é ter os “olhos abertos” ao que antes era vedado e/ou velado. De fato, isso se comprova principalmente hoje em dia: com o conhecimento científico o homem tornou-se como um deus, de posse de armas de destruição que podem exterminar toda a sorte de vida da Terra. Também, com a ciência, a humanidade poderá, talvez um dia, conseguir criar um jardim em outro planeta completamente inóspito, como o Criador.
     Para fechar esta apreciação da Bíblia, convém citar o trecho de uma obra que ajudará a esclarecer ainda mais a importância de se entender os textos sagrados como uma vivência íntima:
Tanto o catarismo como o cristianismo medieval ensinam [...] que a vida na terra é nada, que a vida espiritual só pode ser alcançada após a morte, no "céu". Essa crença tornou-se, em nossa mente, a ideia inconsciente de que o lado espiritual da vida é sempre "em algum outro lugar" ou "do lado de lá". É sempre nalgum lugar diferente de onde estamos, num lugar fora de nossa vida. Nós, ocidentais, não acreditamos realmente que possamos vivenciar nossos deuses e nossa vida espiritual, como uma experiência íntima, e ao mesmo tempo levar uma vida comum, no dia-a-dia aqui na terra. É difícil para nós conceber a ideia desses dois mundos - interior e exterior - coexistindo ao mesmo tempo num ser humano. Por isso que tentamos sempre materializar o mundo divino em alguém ou em algo fora de nós mesmos. […] os ocidentais não crêem no mundo interior, e, consequentemente tudo o que fazemos com esse lado não vivido, tem de ser inconsciente, tem de ser projetado no mundo físico. (JOHNSON, 1997, p. 207-208)
     Devemos passar pelo inferno, tentando alcançar o céu, aqui mesmo na terra. Se céu e inferno existirem espiritualmente, com certeza são muito mais uma extensão do nosso estado de espírito, ainda mais no pós-morte, quando totalmente espiritualizados, do que meros lugares hipotéticos, concedidos segundo nosso comportamento. Quando, mesmo sofrendo, vivemos em um “céu”, com certeza, do “outro lado”, não estaremos no inferno. Se Deus é percebido intimamente, o maior sentido está conosco, e até o pior sofrimento ainda é suportável.


REFERÊNCIAS
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