Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

A origem e a natureza do Eu

     A base do Eu é uma questão fascinante a todos os que estudam psicologia. Como o ser humano chega a desenvolver seu ego, aquele elemento essencial de sua psique, portador da vontade e por meio do qual ele dirige sua vida e gerencia sua personalidade consciente? Como o Eu surge a partir do aparente “nada” psíquico? Essas são questões que intrigam aqueles que estudam o aparelho psíquico, e podem contribuir muito para a psicoterapia, uma vez que muitas doenças derivam da debilidade do Eu. A compreensão da origem do Eu pode explicar também por que um ego é menos estruturado do que o outro, e como criar situações para fortalecê-lo. O objetivo deste texto é tentar esclarecer esse ponto, fazendo uma pequena revisão de obras da psicologia analítica.
     A estrutura psíquica pode ser comparada a um grande conjunto de esferas de diferentes tamanhos. Estas esferas seriam o agrupamento de pensamentos, lembranças, imagens e diversas outras impressões atraídas mutuamente e para seu núcleo pelo grau de força das emoções correspondentes. Todas essas esferas se encontram em um meio escuro e indefinido, e o constituem ao mesmo tempo, de modo a deixar suas superfícies vagas e indefinidas. Esse estado das esferas chama-se “inconsciente”.  O núcleo dessas esferas atrai seus elementos de acordo com o seu tema específico: a mãe, o pai, a criança, o herói, etc. Entretanto, todas as esferas, por sua vez, seriam atraídas para um núcleo maior e formariam uma esfera maior em seu conjunto. O tema desse centro abrange todos os outros temas, pois todos eles formam uma referência, enquanto centros menores, ao centro do conjunto de esferas, que tem maior poder de atração e regulação de toda a estrutura psíquica. É um “princípio estruturador ou organizador que unifica os vários conteúdos arquetípicos. Esse princípio é o arquétipo central ou arquétipo da unidade, ao qual Jung denominou Si-mesmo” (EDINGER, 1992, p. 21). Esse centro magno virtual constitui o maior e mais abrangente arquétipo (como são designados todos os centros esféricos). Como centro magno, esse arquétipo abarca também a superfície total, pois acaba sendo autorreferente. O entorno das esferas forma um entrelaçado de fatores chamado complexo.
Esquema psíquico em forma aproximada ao do texto
     Ocorre que certos temas fazem referência à identidade e a características pessoais do sistema psíquico, e são atraídos principalmente pela força de gravidade do corpo físico individual. Pode-se dizer que esses conteúdos são como pequenas esferas que, como bolhas de sabão, com o tempo se juntam e formam uma bola maior, que mais tarde será chamada de “Eu”. Pode-se afirmar que, quanto mais próximas à esfera egoica, mais definidas se tornam as outras esferas, que se tornam suscetíveis de serem conhecidas pelo Eu e, a partir disso, serem também manipuladas por ele, se transformando e se redefinindo. O Eu ou ego é a sede da identidade subjetiva, e o Si-mesmo, da identidade objetiva. Este constitui a autoridade, psicologicamente, à imagem de Deus. A relação entre o Eu e o Si-mesmo é altamente problemática e correspondente, de maneira bem aproximada, à relação entre o homem e seu Criador, tal como é relatada nos mitos. Na verdade, o mito pode ser definido como expressão simbólica da relação entre o ego e o Si-mesmo (EDINGER, 1992, p. 22-23).
    A superfície da grande esfera psíquica, nas áreas mais próximas à formação da esfera do “Eu”, acaba desenvolvendo uma certa consistência, ou tensão superficial, à medida que a criança se desenvolve, que consiste na troca de impressões, na adaptação e na proteção do sistema psíquico em relação ao meio externo. Essa estrutura se chama persona. Já o restante do conjunto de esferas, que formam o inconsciente, permanece em uma situação de indefinição em relação ao mundo externo, o que expressa o resquício de identidade arcaica do sujeito, via inconsciente, com o mundo externo, que todos portam, e que pode se tornar explícito em várias situações adversas.

O SURGIMENTO DO COMPLEXO DO EGO

     À medida que o bebê interage com o meio circundante, ele vai memorizando as diversas imagens obtidas do mundo exterior. Apesar do nome “imagem” se referir às impressões obtidas a partir dos olhos, aqui o termo é usado de forma mais ampla, no sentido de representação (JUNG, 1991a, §608). Muitas dessas imagens são percebidas de novo e de novo, formando uma rotina de impressões apreendidas pela memória. Muitas necessidades do bebê começam então a se vincular a essas imagens internalizadas que se referem às respectivas pessoas e objetos do mundo exterior. Internamente, aos poucos, elas vão se agrupando ao redor dos diversos temas, ou arquétipos, formando complexos, que serão maiores ou menores, ganhando mais ou menos energia, na medida em que vinculam emoções fracas ou intensas, impressões mais ou menos veementes.
     Existe um complexo, em particular, que é formado a partir das impressões relativas ao próprio indivíduo que percebe. Esse complexo reúne elementos relacionados à identidade do indivíduo, que integrarão a sua personalidade consciente, tais como nome, endereço, quem são os pais, grau de estudo, o próprio comportamento e habilidades, etc. Ele é chamado de “complexo do ego”.
     O Eu é um fator composto de variados elementos, representações provindas das funções sensoriais que transmitem estímulos de dentro e de fora, além de imagens de processos anteriores. Esses componentes necessitam de um fator dotado de forte poder de coesão, o que é encontrado na consciência. Por isso esta é essencial ao Eu. Porém, sem o Eu não se pode pensar em consciência. Essa contradição se explica ao se considerar o Eu como o reflexo de muitos e variados processos e suas interações, os quais compõem a consciência do Eu (JUNG, 1991a, §611). 
Assim que um conteúdo ingressa no campo da consciência, cai numa rede de associações. Se eu sei alguma coisa, então ela está associada ao complexo do Eu, e por meio deste está conectada a todos os outros conteúdos conscientes momentâneos da minha consciência. Portanto, se desejamos imaginar a consciência dentro de um esquema, podemos dizer que é um campo de percepção consciente em que o complexo do Eu age como centro regulador. (VON FRANZ, 1992b, p. 60-61)
     Parece que a consciência do Eu é uma síntese de várias “consciências sensoriais”, na qual a autonomia de cada consciência individual fundiu-se na unidade do eu dominante. Essa diversidade forma uma unidade devido à sua relação com a consciência atuar como uma espécie de força gravitacional que atrai as várias partes em direção ao centro virtual. Daí ser nomeado de “complexo do Eu” (ou do ego). Esse complexo do Eu tem uma composição flutuante e, por isso, passível de mudanças, as quais podem se expressar na psicopatologia ou nos sonhos (JUNG, 1991a, §611).

Surgimento do ego
     O complexo do ego parece advir da percepção inicial e simples dos sentidos da criança, a qual acaba se diferenciando e adquirindo sutilidades. Uma dessas consiste na discriminação entre meio interno e meio externo. Devido, sobretudo, à resistência do mundo exterior às demandas do bebê (seus movimentos, suas necessidades, etc.), este aprende a notar que tudo o que se encontra aquém do limite do seu corpo é distinto do que se encontra além, pois o desejo de se movimentar vem de si mesmo. Essas distinções ocorrem por conta das colisões e conflitos com o meio externo (convenções sociais e educação), assim como com os próprios impulsos, a própria natureza e moralidade. A criança aprende que não deve tocar ou pegar em algo, apesar de ter um tremendo desejo de fazê-lo. Instala-se o conflito interior. 
Quer o chocolate e é proibido pegá-lo; assim, o desejo de pegá-lo colide com a força inibidora da consciência. Dá-se toda uma cadeia subsequente de colisões com o mundo interno, com desejos, impulsos, afetos, etc., que batem como ondas contra a terra firme do Eu e são sempre repelidos. Isso é tudo que podemos dizer, dentro de uma certa plausibilidade, a respeito da formação do Eu. Através dessas colisões, lentamente, um complexo que é mais forte que outro se constitui e forma aquilo que chamamos de Eu. (VON FRANZ, 2003, p. 162)
     Por esse motivo a criança primeiro fala de si mesma na terceira pessoa, continua a autora, dizendo o próprio nome ao invés de dizer “eu”. De início, essa criança só se vê refletida no que as pessoas falam a seu respeito. Só depois é que a sensação do “mim”, do “eu” e do “sou eu” começa vagarosamente a se construir, e ela finalmente se identifica com tudo aquilo que constitui sua própria pessoa. 
A identificação com o objeto contribui
para o não surgimento do ego
     A percepção em si é auto e extra-referente: existe alguém que percebe e algo que é percebido. Por extensão, aquele que percebe é interno, em oposição ao externo. Na medida em que essa percepção também se dirige ao mundo interno, ela se identifica com seus aspectos internos que têm a ver, principalmente, com a identidade do indivíduo (o complexo do ego), pois estes fazem parte do sistema psíquico que percebe. Qualquer fator psíquico só assume, por princípio, “a qualidade de consciência quando entra em relação com o eu. Se não há essa relação, o fator permanece inconsciente. […] A consciência, portanto, pode ser muito bem entendida como um estado de associação com o eu” (JUNG, 1991a, §610).
O inconsciente, tal como o conhecemos e como nos aparece hoje, tornou-se perceptível somente através da diferenciação do consciente. Nos primitivos o interior, de maneira muito mais acentuada, é também o exterior e vice-versa. Este “estar mergulhado numa corrente de acontecimentos, na qual interior e exterior mal se distinguem” é, contudo, também para nós um estado normal psiquicamente duradouro, por vezes interrompido pela consciência reflexiva e por uma certa continuidade do Eu. (VON FRANZ, 1992b, p. 14)

O EIXO EGO–SI-MESMO


     Entretanto, de acordo com Edinger (1992, p. 24) também internamente ocorre uma distinção que acompanha a diferenciação do sujeito da realidade externa: a separação progressiva entre o ego e o Si-mesmo. Na verdade, o autor descreve um desenvolvimento egoico que ocorre ao longo de progressivos ciclos de separação e união entre esses centros, respectivamente, subjetivo e objetivo da psique, o que é representado no diagrama acima, com algumas modificações em relação ao original. O ego deixa sua primitiva identificação com o Si-mesmo, chamada de inflação, para construir um eixo de ligação constante, e não de fusão, com o Si-mesmo, chamado eixo ego–Si-mesmo, representado pela linha que os une no diagrama. O eixo ego–Si-mesmo é um vínculo vital, o qual assegura a integridade do ego. As áreas sombreadas do ego indicam a identidade residual ego–Si-mesmo. Deve-se resguardar aqui a compreensão de que o Si-mesmo, como totalidade da psique, engloba o ego, pois é o centro e ao mesmo tempo a circunferência da psique, e que o diagrama é limitado enquanto recurso racional necessário.
     No estado original o ego e o Si-mesmo são um só, isto é, o ego não existe, exceto enquanto potencialidade. Aqui existe um estado de identidade básica total entre o ego e o Si-mesmo. No estágio do ego emergente, este começa a separar-se do Si-mesmo, mas tem seu centro e uma área maior ainda em identidade arcaica. Na fase denominada “individuação”, termo que, na verdade, representa todo o processo amplo de desenvolvimento do indivíduo, ainda existe uma identidade ego–Si-mesmo residual. Porém, aqui o eixo ego–Si-mesmo tornou-se agora parcialmente consciente, o que nos dois estágios anteriores não ocorria, e que antes se confundia com a identidade das duas figuras. O estado ideal representa um limite teórico, que provavelmente não existe em uma situação real. Constitui o estado de total separação entre o ego e o Si-mesmo, assim como uma completa consciência do eixo que os une.
     O diagrama ilustra a tese de que
o desenvolvimento psicológico se caracteriza pela existência de dois processos simultâneos: de um lado, a progressiva separação entre o ego e o Si-mesmo; de outro, o aparecimento cada vez mais claro, na consciência, do eixo ego–Si-mesmo. […] Conforme vai se repetindo, no decorrer do desenvolvimento psíquico, esse processo dá origem a uma progressiva diferenciação entre o ego e o Si-mesmo. (EDINGER, 1992, p. 26)
Ciclo da vida psíquica, baseado em Edinger (1992, p. 71)
     Nas duas fases iniciais, continua o autor, o ciclo se configura como uma experiência de alternância entre dois estágios de ser: a inflação e a alienação (separação). Depois, quando o eixo ego–Si-mesmo alcança a consciência, no estágio da individuação, ocorre uma relação dialética entre o ego e o Si-mesmo.
     É preciso alertar que esse processo de desenvolvimento interior do ego descrito atrás é acompanhado pela projeção do Si-mesmo na realidade externa, e que a interação com esta reforça o processo tanto ao nível externo quanto interno. Assim, em um primeiro momento, o Si-mesmo é projetado sobre a figura materna, depois sobre o pai e, adiante, em diversas figuras, até englobar a sociedade como um todo. Mais tarde, essas projeções são progressiva e parcialmente recolhidas, e o mundo externo tende a ser percebido como símbolo do mundo interior.
     Continuando a linha de pensamento do desenvolvimento do ego a partir da diferenciação do mundo interior/exterior, enquanto o sujeito é tão somente aceito, ele não percebe nenhuma diferença entre si e o meio externo, já que existe aí uma continuidade entre aquele que deseja e aquele que satisfaz o desejo, entre o solicitante e o objeto solicitado. A negação desse objeto é que separa essa continuidade entre o eu que quer, mas cuja satisfação é negada, e aquele que nega essa satisfação. Ocorre a consciência, então, do eu e do outro que nega, do eu e do objeto inalcançável, desejável. O sujeito percebe que, apesar de continuar mirando o que é desejado, não pode se satisfazer devido à negação. Isso forma uma tensão polar tipo sujeito/objeto desejado. Aquele pode tentar alcançar o objeto de várias outras formas, inclusive sem a presença de quem o negou. Então o sujeito percebe as consequências do seu feito, que pode ser uma punição – da cara feia até um tapinha, ou mesmo nenhuma reação daquele que se interpôs. Nesse ínterim, e com base também nas expressões das pessoas que nem sempre demonstram ser o que são, o pequeno sujeito elabora uma espécie de “película” psíquica ao redor da sua psique consciente que forma diferentes expressões, na maioria das vezes incongruentes com a totalidade do seu ser. Essa “película” é a persona, que tem o papel também de “filtrar” as impressões recebidas, de forma que se adaptem ao sujeito, mas que acaba filtrando também sua personalidade genuína em relação ao mundo exterior, para que este não acabe negando continuamente o que deseja. A persona forma como que uma película em volta do complexo do ego e faz parte dele, delimitando-o ao constituir um papel.
     A observação do sonho de crianças entre os quatro e doze anos revela figuras que retratam o futuro Eu como imagens projetadas fora de si, tais como um irmão mais velho ou um líder de um grupo, isto é, figuras que ela admira e diz querer ser mais tarde. Pode-se chamar essas figuras de modelos de Eu ou, pelo menos, modelos do próximo estágio de desenvolvimento do Eu. Por exemplo, quando a criança quer fazer com que algo aconteça, isso é sinal de que seu “eu” incipiente começa a comandar processos psíquicos, até então automáticos. Porque essa é uma ideia típica de Eu: agora é a criança que diz o que ocorrerá e não mais o pai ou outras pessoas com autoridade. Entretanto, observa-se que as figuras oníricas citadas possuem poderes mágicos, ou são brilhantes, ou algo do gênero, o que mostra que elas não são apenas as figuras conhecidas da criança, mas também o Si-mesmo. Isso porque as qualidades sobrenaturais ou divinas apontam para o Si-mesmo, assim como as qualidades vivenciadas no cotidiano referem ao ego. Por isso, na psicologia analítica se diz que o principal impulso que constrói o Eu é aquele centro que, na vida adulta, é chamado de Si-mesmo (VON FRANZ, 2003, p. 162-163).

OS ESTÁGIOS DE DESENVOLVIMENTO DO EU

     Segundo Jung (1991a, §755-764), o desenvolvimento do Eu se constitui em três estágios, que aqui serão tratados como cinco: a percepção da conexão entre dois ou mais conteúdos psíquicos, a percepção de uma série de conteúdos que pertencem ao sujeito, o sentimento de subjetividade, o nascimento psíquico e, finalmente, o estabelecimento do Eu, com a juventude. No primeiro, a consciência ainda está inteiramente ligada à percepção de algumas ligações. Por isso é esporádica e não mais lembrada posteriormente. O que existe aqui são “ilhas de consciência”, que são como luzes isoladas ou objetos iluminados dentro da escuridão do inconsciente. Essa é uma situação totalmente caótica ou anárquica. Nesses primeiros anos, “a criança ainda está muito ligada ao estágio pré-natal, à vida do Bardo. É como se ainda não tivesse nascido verdadeiramente no mundo real; em compensação encontra-se muito mais próxima das ideias primordiais do que a pessoa adulta e adaptada à realidade. O inconsciente pode irromper, trazendo imagens ou símbolos que estão muito além da possibilidade de compreensão da consciência infantil […]. Essa irrupções do inconsciente, porém, representam, em função da grande impressionabilidade da criança, sempre um sério perigo de cisão e desintegração, pois a imagem arquetípica prende a criança de tal modo que nenhuma outra realidade consegue coexistir” (JUNG, 2011, p. 289).
Conteúdos iniciais da consciência como "ilhas"
     Então, essas “ilhas de consciência” passam a constituir uma nova série muito importante de conteúdos que pertencem ao próprio sujeito que percebe. De início, essa nova série é apenas percebida, como as séries originais de conteúdos e, por isso, a criança, ao falar de si mesma, o faz na terceira pessoa. Nesse estágio, a criança ainda pode se identificar alternadamente com diversas figuras ou “ilhas de consciência”, pois ainda impera a descontinuidade da consciência. Somente com o tempo “pontes terrestres” emergem na criança, ligações duradouras se estabelecem e desenvolve-se uma consciência, e consequentemente um ego, mais coerente (JUNG, 2011, p. 96).
     Mais tarde, essa série de conteúdos do Eu, ou complexo do ego, adquire energia própria, provavelmente como resultado de exercícios, o que resulta no sentimento de subjetividade ou egoicidade. Este é o momento em que, provavelmente, a criança começa a falar de si na primeira pessoa, e que instala-se a continuidade da memória, configuradas como continuidade das reminiscências do Eu. Essas duas fases são consideradas monárquicas ou monistas. Existe aí uma resistência às forças internas e externas que impelem o sujeito ao envolvimento no mundo. Algo nele quer permanecer inconsciente, como criança, ou consciente apenas do seu ego. Quer rejeitar tudo o que é estranho ou sujeitá-lo à sua própria vontade, assim como não fazer nada, ou, no máximo, satisfazer sua ânsia de prazer ou de domínio. Nesse estágio é que se inicia o estado de ego emergente de Edinger (1992), no qual também se encontram muitos adultos com problemas de estruturação do Eu.
     Nesses três estágios infantis da consciência, não existem problemas devido ao indivíduo ser basicamente governado pelos instintos e nada depender dele, mas de seus pais. É como se a criança ainda não tivesse nascido inteiramente, uma vez que se acha mergulhada na atmosfera psíquica dos pais, que decidem tudo por ela. O confronto das limitações externas com os impulsos subjetivos não chega a provocar uma cisão interior, pois este se submete ou as evita, em total harmonia consigo mesmo. Com a puberdade e suas manifestações corporais, a percepção do Eu é de tal forma acentuada que este com frequência se impõe desmedidamente. Ocorre então, com a irrupção da sexualidade, sua diferenciação consciente em relação aos pais, pois até essa ocasião estava somente familiarizada com os instintos infantis, relativamente ordenados graças à educação e à formação escolar.
     Devido ao choque com a sexualidade, a posição estável adquirida pelo Eu é abalada, por vezes de forma catastrófica. Essa é a idade onde eventualmente podem ocorrer transtornos mentais, uma vez que algo totalmente novo irrompe e atinge o Eu, que ainda não estava preparado para tal (JUNG 2011, p. 218). É quando um impulso subjetivo se contrapõe a outro, isto é, quando, ao lado dos conteúdos habituais do Eu, surge uma nova série de igual intensidade. Esta tem um significado funcional igual à do complexo do Eu, merecendo o nome de “segundo Eu”, diferente do anterior e que, em dadas circunstâncias, pode até mesmo tomar o comando das mãos do primeiro Eu. Então instala-se a divisão interior, um estado muito problemático. Por isso a adolescência é uma fase considerada por muitos de “anos difíceis”. Pode-se chamar esse estágio de dualista, pois então o indivíduo sente necessidade de reconhecer e aceitar o que é diferente e estranho como parte sua e como uma espécie de ego. Aqui o Eu emergente, fase proposta por Edinger (1992), eclode inteiramente. Esse “segundo Eu” pode ser entendido como o Si-mesmo, o qual é percebido como uma figura estranha e sombria, uma vez que já não se encontra totalmente assimilado ao ego, mais consciente, mais “iluminado”. Então, o dinamismo de alternância entre a inflação e a alienação já se estabeleceu e tende a continuar pela vida do jovem adulto, embora com o reforço social, que enfatiza a necessidade do estabelecimento do indivíduo no mundo.
     Sobrevém o período da juventude, que para Jung (1991a, §769-771) inicia-se aproximadamente nos anos que imediatamente seguem a puberdade e vai até o meio da vida (35 a 40 anos). O estado problemático da adolescência é deixado para trás, pois os ideais de eficiência, utilidade, etc., guiarão o indivíduo na ampliação e na consolidação da existência física, fixando suas raízes no mundo. Para o autor, o significado e a finalidade de um problema não está na sua solução, mas no fato de se trabalhar constantemente sobre ele, o que evita a estupidificação e a petrificação. Assim, o jovem agora procura conquistar um lugar na sociedade e modificar a própria natureza original de modo a se adaptar mais ou menos à forma atual de existência. Essa é uma luta travada dentro e fora, comparável à luta da criança pela existência do Eu. Com a aproximação do meio da existência, a firmação da atitude pessoal e da posição social, mais o jovem se aferra aos “verdadeiros” princípios e ideais de comportamento com os quais conseguiu se estabelecer.
     A menos que o jovem tenha se tornado um neurótico, deduz-se que seu Eu conseguiu se estruturar e se estabilizar na psique, deixando uma das séries de conteúdos psíquicos (primeiro ou segundo Eu) no inconsciente, o que formará parte da sombra, que tenderá a eclodir de maneira mais evidente na última metade da vida. Enquanto isso, a alternância inflação/alienação ainda continua, como descrito no ciclo da vida psíquica apresentado anteriormente. Se tudo correr bem, o indivíduo consegue entrar no processo de individuação, tornando-se consciente do eixo ego–Si-mesmo, e estabelecendo o diálogo com o Si-mesmo.
Sri Ramakrishna

EU E COMPLEXO DO EU

     Como última abordagem sobre a natureza do Eu, convém fazer uma breve digressão para se tentar uma compreensão ou diferenciação ainda maior. Jung tentou convencer os hindus de “que é impossível livrarem-se da ideia do ego ou da consciência, mesmo no mais profundo estado de samadhi”, o que eles foram incapazes de entender. Afirmou “que se Ramakrishna, por exemplo, tivesse sido capaz de libertar-se completamente da consciência, em seus momentos de profundo êxtase, então esses momentos teriam sido não-existentes. Ele jamais seria capaz de recordá-los ou de registrá-los, ou mesmo de considerá-los como tendo tido existência em algum momento” (MCGUIRE e HULL, 1982, p. 346). Entretanto, devido a este fato, pode ser preciso diferenciar ainda mais a estrutura egoica para fazer justiça à filosofia oriental, que prega a negação ou morte do ego para que os indivíduos alcancem um estado duradouro de beatitude, ou iluminação. Haveria na prática e na filosofia milenares dos hindus elementos de observação psicológica concretos que os levariam a fazer semelhante afirmação? O que se poderia fazer para conciliá-los com a psicologia analítica? 
O esquecimento nos mostra muito bem quantas vezes e com que facilidade os conteúdos perdem sua ligação com o eu. Por isso, poderíamos comparar a consciência ao jato de luz emitido por um refletor. Só os objetos situados sob o cone de luz é que entram no campo de minha percepção. Assim, o fator psíquico de que eu não tenho consciência existe em alguma parte, num estado que, com toda a probabilidade, não difere essencialmente daquele em que é visto pelo eu. A consciência, portanto, pode ser muito bem entendida como um estado de associação com o eu. (JUNG, 1991a, §610)
     Ora, pode-se-ia imaginar o ego como uma espécie de foco de luz consciente, que parte do Si-mesmo, e que ilumina uma parte habitual da superfície da psique. Essa luz tem a função de gerenciar a troca de impressões do meio interno com o meio externo e vice-versa, de forma consciente, adaptada, para integração do indivíduo e do mundo reciprocamente. Fugindo um pouco da teoria junguiana, que percebe esse ponto focal de consciência simultaneamente como ego, pode-se pensá-lo, de início, como um feixe de "luz" consciente totalmente atrelado ao processo de construção do complexo do ego, o qual teria o papel importantíssimo de delimitar esse foco. As pequenas "ilhas de consciência", complexos nascentes na personalidade, vão se agregando, formando focos de luz cada vez maiores, até chegar ao ponto de reunir-se em um complexo maior, que carrega identificação com o corpo e memórias relativas a este. Entretanto, como o complexo do ego contém características de identidade (como outros complexos, que derivam também de experiências pessoais), o feixe de consciência acaba se apegando e se confundindo, se identificando com o complexo do ego, transformando-se em “foco” de luz consciente, dirigido. Então o ponto focal, que se conhece como o aspecto perceptivo do ego, uma vez mais ou menos delimitado, pode se chamar de “eu”. Porém, esse ponto focal de consciência, ao se tornar mais ou menos agregado e concentrado, torna-se relativamente autônomo em relação ao complexo do ego, podendo identificar-se em graus maiores ou menores com outros complexos, dependendo da energia e da atração destes. Dessas identificações derivam os fenômenos de inflação e possessão que levam as pessoas à psicoterapia.
     Esse modo de explicar a construção complexo do ego/foco da consciência acaba por integrar ainda mais a teoria junguiana à filosofia budista e oriental como um todo, que prega a “morte” do ego como objetivo da realização do sujeito. Jung discordava desse pensamento porque via o ego como aquela entidade necessária à percepção e à autonomia frente ao mundo. Quem iria “matar” o ego, seria o próprio ego, o que seria impossível. Entretanto, as duas correntes de pensamentos podem ser integradas se se diferenciar o ego – ponto focal da consciência – do complexo do ego. O que “morreria” para os orientais seria o complexo do ego e não o ponto focal de consciência, a partir do qual o indivíduo se torna um sujeito no mundo. Este ponto focal poderia, para utilidades práticas, utilizar-se de sua identidade original, o complexo egoico, para atuar no mundo. Mas não precisaria de uma identidade psíquica para gerenciar sua personalidade, o que seria feito com a harmonização da consciência com o Si-mesmo.
     Com a maturidade, a diferenciação ego/complexo do ego, hipoteticamente, evitaria uma identificação total e constante do foco de luz consciente com o complexo egoico. Isso estabilizaria de tal forma o Eu que poderia impedi-lo de ser engolfado pelo inconsciente em situações muito difíceis da vida, pois isso só poderia ocorrer em relação ao complexo do ego. É claro que essa seria uma situação ideal, cujo alcance dificultaria ao homem ficar psicopatologicamente enfermo. Mas daria ao ego uma extrema autonomia, e ao mesmo tempo o subordinaria inteiramente ao Si-mesmo, como instrumento da consciência, de adaptação ao mundo. Seria a “iluminação”, nirvana ou samadhi oriental. O homem teria alcançado o estado paradisíaco infantil inicial sem, no entanto, inflar-se pela identificação com o o Si-mesmo.
As crianças compartilham, com o homem primitivo, a identificação do ego com a psique arquetípica e com o mundo exterior. Para a mente primitiva não existe nenhuma distinção entre interior e exterior. Para a mente civilizada, o homem primitivo está relacionado de modo encantador à natureza, assim como está em sintonia com o processo da vida: mas é, ao mesmo tempo, um selvagem e comete os mesmos erros de inflação que as crianças cometem. O homem moderno, alienado da fonte do significado da vida, encontra na imagem do homem primitivo um objeto que exerce sobre ele uma forte atração. (EDINGER, 1992, p. 32)
A indulgência e a disciplina rígida devem operar juntas
na educação infantil, pois são condições necessárias
     Nossa origem psicológica, continua o autor, tem dupla conotação: por um lado, é uma condição paradisíaca, um estado de unicidade em relação à natureza e aos deuses e infinitamente desejável; por outro lado, é a base de nosso padrão de consciência humana, ligada à realidade do tempo e do espaço. É um estado de inflação, de condição irresponsável, de luxúria incorrigível, de arrogância e de desejo rude. O problema para o adulto é obter a união com a natureza e com os deuses, a forma como a criança começa, sem provocar a inflação da identificação.
     Aliás, esse é o mesmo problema da educação infantil, na disputa entre a indulgência e a disciplina rigorosa: manter a integridade do eixo ego–Si-mesmo e, ao mesmo tempo, dissolver a inflação original. A indulgência enfatiza a aceitação e o encorajamento da espontaneidade da criança e alimenta seu contato com o Si-mesmo, mas também mantém e encoraja a inflação e uma atitude irrealista para com as exigências da vida exterior. A disciplina rígida enfatiza os limites rigorosos de comportamento, encoraja a dissolução da identidade ego–Si-mesmo e trata a inflação de modo bastante eficaz, mas tende a danificar a conexão vital e necessária entre o ego e suas raízes no inconsciente. As duas condições são necessárias e devem operar em conjunto, embora estejam em oposição (EDINGER, 1992, p. 33).




REFERÊNCIAS

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