Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

Frozen: uma congelante estória de recuperação

Capa do filme "Frozen".
     É interessante como certas animações, normalmente voltadas ao público infantil, conseguem tratar temas universais de maneiras muitas vezes mais eficazes, porque simbólicas, do que vários filmes dramáticos adultos. Frozen foi baseado no conto de fadas “A rainha da neve”, de Hans Christian Andersen. É a estória de como Elsa, que possui a habilidade de criar formas por meio do congelamento da umidade do ar, capacidade que é nova e estranha para a maioria, pode reprimi-la e, por isso, não desenvolvê-la. Expressa como a repressão de nossas potencialidades pode levar à opressão do próprio eu, ao sofrimento e ao isolamento das outras pessoas. A única saída que Elsa encontra para seu poder de congelamento é viver solitária, pois aí consegue não somente exercer plenamente sua habilidade, como pode fazê-lo sem medo de machucar alguém. Mantendo os poderes de Elsa escondidos, seus pais esconderam sua própria filha, já que são característica genuína dela. Ao mesmo tempo, Frozen conta a estória de como a extroversão e a introversão podem ser equilibradas, a timidez vencida, e até o início de uma psicose revertido, para uma boa relação do indivíduo com o mundo.
     A capacidade de tecer formas de gelo a partir do nada remete à imaginação, à criatividade e à intuição, habilidades que Elsa demonstra ter muito desenvolvidas. As irmãs Elsa e Anna são muito apegadas, e a primeira conduz a segunda pelas suas criações, o que a cativa. Entretanto, para um desenvolvimento saudável, os irmãos estão suscetíveis à diferenciação entre si, ao aprimoramento de faculdades diferentes e, assim, à apreciação também distinta pelos pais. Como Anna admira muito Elsa e sua capacidade imaginativa original, segui-la significaria sempre ser inferior, estar um degrau atrás, o que é um ferimento, um congelamento do seu próprio ser mental (Elsa a atinge com seu poder a cabeça da irmã). Então esta desenvolve a função sentimento e de
A capacidade criativa de Elsa.
forma totalmente extrovertida, o que será explicado melhor adiante. Quando a irmã a atinge novamente, desta vez no coração, órgão representativo de sua função mais desenvolvida, então Anna corre o perigo de virar uma estátua de gelo, um colapso de sua capacidade de entrega ao outro, de se doar e se identificar com outrem. Anna se fere com a irmã justamente devido a essa sua capacidade empática. Se Elsa sente culpa de ter ferido a irmã um dia, esta também sente que deve ter feito algo para a irmã separar-se inexplicavelmente dela.
     Percebe-se como Anna é notadamente extrovertida, desequilibradamente, ao ponto de chegar a atirar-se nos braços do primeiro homem que a seduz. Zacharias (2006, p. 58) afirma que o extrovertido se orienta de acordo com o ambiente externo, o que inclui pessoas, objetos e ocorrências. Assim, estes possuem predominância sobre os aspectos subjetivos, internos, da experiência. O interesse e a energia se voltam para o mundo externo, que se torna seu orientador e campo de ação. Ele se acomoda com facilidade ao meio externo e caminha junto a ele. Isso pode ser prejudicial se ficar limitado ao mundo externo, esquecendo-se de si e de seu próprio bem-estar. Pode ser que o extrovertido se desgaste tanto com as exigências externas, às quais valoriza, e assim chegue ao ponto da exaustão e da perda da saúde física. O perigo que corre, então, é o de ser absorvido pelos estímulos externos, perdendo-se neles. Como o sistema psíquico é um conjunto autorregulador, existe no extrovertido uma tendência à introversão inconsciente, e vice-versa. O inconsciente pode provocar disfunções nervosas e físicas para equilibrar a psique, ocasionando uma limitação involuntária à extroversão extrema (ou à introversão radical, no outro caso).
O extrovertido saudável é aquele em que a introversão também intervém. Uma pessoa é considerada extrovertida por ser essa sua disposição mais habitual e pelo fato de que sua função mais diferenciada age de maneira extrovertida, ficando a função auxiliar em uma disposição introvertida. Assim, para agir, esse indivíduo prefere a disposição extrovertida, mas mantém, em momentos pessoais, o contato com a introversão, contatando seus sentimentos e pensamentos não explicitados no dia-a-dia. (ZACHARIAS, 2006, p. 58-59)
Esquema simplificado das atitudes extrovertida e introvertida.
     O extrovertido, continua o autor, tende a vivenciar o mundo antes de entendê-lo. Mergulha nos acontecimentos antes de avaliar as implicações de suas decisões. Por isso é impulsivo e não resiste aos convites para participar de atividades. Prefere trabalhos em equipe, fala melhor que escreve, é mais generalista que especialista e mantém um bom diálogo enquanto faz outras coisas.
     Ao contrário de Anna, Elsa parece ser muito introvertida, e seu poder congelante revela ter relação estreita com essa característica (leia sobre o gigante de gelo posteriormente). Os introvertidos orientam-se por fatores subjetivos. Na verdade, os fatos exteriores não são rejeitados, mas sua atenção está centrada na impressão interna que esses fatos causam. A atenção é focada interiormente, nas impressões, nas emoções, nos pensamentos e nos sentimentos, isto é, nos processos internos que foram disparados pelo que se encontra lá fora. O introvertido prefere compreender o mundo antes de experimentá-lo, daí hesitar diante das oportunidades. Por isso é difícil aceitar imediatamente qualquer convite a alguma atividade. Prefere escrever a falar, e trabalhar com o mínimo de pessoas e distração. Os ambientes com muitos estímulos são evitados e tende a ficar alheio ao que ocorre à sua volta. Tem dificuldade em manter um diálogo enquanto faz outras coisas, preferindo fazer uma coisa de cada vez. Tende a se aprofundar muito em um assunto apenas do que ser superficial em variados temas (ZACHARIAS, 2006, p. 59-60).
     Como a extroversão parece ser a norma na cultura ocidental, a ponto de considerar a introversão como uma atitude egoísta ou fortemente egocêntrica (JUNG, 1991e, §696), ao expressar-se criativa e inadvertidamente, Elsa é considerada pelas autoridades presentes uma bruxa, e estranha para a população em geral. Mas Elsa não é somente introvertida. Sua autoestima foi depreciada pelos pais em benefício de Anna, considerada mais frágil por possuir maior capacidade de expressão, inclusive de sua ingenuidade, ao contrário da irmã, que, por pouco exteriorizar sua personalidade e ser mais velha, parece ser julgada mais forte por eles. Por isso se torna também extremamente tímida e insegura, o que se nota no modo como precisa usar luvas para tocar os objetos e as pessoas, pois estas a sentem como “fria”, “congelante”. A timidez é uma grande fragilidade perante a rejeição dos outros e, por isso, os tímidos evitam expor-se, principalmente a estranhos ou ao grande público. Já o introvertido pode expor-se se isso for necessário, caso contrário prefere não aparecer por desconsiderar o ambiente externo, e não por medo de rejeição, como ocorre com o tímido (ZACHARIAS, 2006, p. 60).
Elsa em seu castelo.
     Elsa surta, foge e torna todo o reino gélido, reflexo de seu estado emocional. Ela constrói um castelo no ar e vai viver nele, sintoma característico da psicose. Nesse castelo, em outro mundo, ela pode viver tranquila, pode ser quem é, em total liberdade. Por fora, todos sentem sua frieza e como não extravasa mais seus sentimentos. Tudo isso é também resultado principalmente da maneira como foi criada, sem amor, sem valorização de sua essência, de sua genuinidade. Seu ego se estruturou mais fragilmente, pois não foi reforçado pela afeição. É então que ela canta uma canção, cujas partes reproduzidas a seguir são extraídas da versão cinematográfica dublada em português e da versão traduzida do site Vagalume, quando esta for considerada a tradução mais precisa.
O vento está uivando como este turbilhão tempestuoso dentro de mim / Não consegui mantê-lo lá, o céu sabe que eu tentei / Não os deixe entrar, não os deixe ver / Seja a boa menina que você sempre deve ser / Oculte, não sinta, não deixe que eles saibam (VAGALUME, 2014).
     O introvertido tenta manter ao máximo seus conflitos internos dentro de si, sem expressá-los. Como desvaloriza o meio ambiente externo, não tem por que fazê-lo. Ainda mais o tímido, que teme poder ser rechaçado pelos outros. Entretanto, quando a introversão é extrema, como no caso de Elsa, a pressão para extravasar o próprio ser é imperiosa e por isso “explode”. Infelizmente, seus pais transmitiram que ela não devia se manifestar e ser livre, em benefício da irmã e para que ninguém a achasse estranha. “Oculte, não sinta” - ela tem que fazer de conta que leva uma vida normal, que não se sente rejeitada, envergonhada e desvalorizada. A situação não poderia continuar assim.
De longe tudo muda / Parece ser bem menor / Os medos que me controlavam / Não vejo ao meu redor / É hora de experimentar / Os meus limites vou testar / A liberdade veio enfim / Pra mim / Livre estou, livre estou (FROZEN, 2014).
     A liberdade tão ansiada por Elsa e o surto que a torna aparentemente psicótica (esquizofrênica) são condições que coincidem com uma história verídica que fez sucesso no filme que inspirou, muito conhecido: “Uma mente brilhante”, de Ron Howard, estrelado por Russell Crowe. O livro do mesmo nome, de Sylvia Nasar, no qual o filme foi baseado, traz muito mais conteúdos sobre a vida de John Nash, gênio da matemática que se tornou esquizofrênico. Em uma carta à sua primeira esposa, Nash escreveu: “Percebe, você deve simpatizar mais com as verdadeiras necessidades de libertação, libertação da escravidão, libertação da castração, libertação da prisão, libertação do isolamento...” (NASAR, 2014, p. 464). A autora cita outro autor que discorre da recuperação de Nash: “O fato de ficar mais livre para se expressar, sem medo de que alguém o mandasse ficar calado ou o entupisse de remédios, deve tê-lo ajudado a sair de seu isolamento linguístico hermético, para onde fizera uma retirada desastrosa” (Ibid., p. 474). Infelizmente, Nash não conheceu o trabalho de Nise da Silveira, brasileira que dedicou sua vida recuperando psicóticos com pinturas em tela, onde eles podiam se expressar, exteriorizando seus loucos conteúdos em conexão com a realidade do quadro.
Você nunca vai me ver chorar / Aqui estou e aqui ficarei / Deixe a tempestade se alastrar / Meu poder agita através do ar até o chão / Minha alma está espiralizando em flocos congelados por toda parte / E um pensamento cristaliza como uma explosão de gelo / […] / A garota perfeita se foi / Aqui estou à luz do dia / Deixe a tempestade se alastrar (VAGALUME, 2014).
     Para uma introversão intensificada pela timidez, as próprias criações imaginativas solitárias da alma são suficientes. Enquanto não se expressava, não se mostrava como era, parecia a garota perfeita e não a estranha bruxa que todo mundo supôs ser. É preferível viver sozinha a permanecer com medo de ferir, mas sempre se machucando.
     Em certo ponto do filme Elsa cria, sem saber, o boneco de gelo Olaf, símbolo do Si-mesmo, o qual diverte com sua capacidade de ser desmontado e reintegrado. Falando do caráter de futuro do símbolo da criança, da qual Olaf apresenta muitos aspectos, Jung (2000, §278) diz que a meta do processo de individuação é a síntese, isto é, a criação do Si-mesmo. Este é a inteireza que transcende a consciência e o ego do indivíduo. Segundo o autor, os símbolos do Si-mesmo ocorrem frequentemente no início do processo da individuação e podem ser observados nos sonhos iniciais da primeira infância (Olaf aparece no início do exílio de Elsa e quando as irmãs eram crianças). Isso indica que o
Olaf representa o Si-mesmo de Elsa e possui a
atitude extrovertida, sombria para ela.
Si-mesmo é uma potencialidade, uma possibilidade de vivência, que já existe desde cedo, mas que depende de uma montagem, de materialização, de uma síntese. Observa-se esse modelo inicial do Si-mesmo na introdução do filme, quando as crianças montam Olaf, que é um simples boneco de neve comum, inanimado. Porém, mais tarde, Anna o encontra quando está para se deparar com Elsa. Devido ao momento em que surge, e totalmente animado, ele parece significar o início das tentativas de Elsa de integração de seus diversos aspectos. O trabalho de integração psíquico, o processo de individuação, consiste em uma série de separações e unificações. “A união interior deve ser interpretada como um 'fortalecimento' frente a influências externas desintegradoras” (JUNG, 2000, §612). Anna, por sua vez, parece representar a potencialidade de extroversão que a irmã precisa para se equilibrar e conviver socialmente. Olaf fica do lado de Anna, que representa o lado sombrio de Elsa que precisa ser mais integrado à vida da irmã.
     Mas Elsa, para se proteger de ameaças à sua vida, representadas por interesses de poder nos personagens Hans e Duque de Weselton, cria um gigante de gelo, que coloca em perigo a vida da própria irmã e que se opõe à inteireza da psique (Olaf). Em algumas versões da mitologia nórdica, onde há gigantes de gelo e de fogo, estes surgiram antes dos deuses. Aqui o fogo remete à emocionalidade. O gelo representa o clímax de um estado emocional que se transforma em rigidez.
Provavelmente vocês já viram alguém em um estado de fúria apaixonada. Se isso se intensifica, de repente a pessoa não sente mais nada, a emoção baixa; a pessoa torna-se completamente fria como o gelo e rígida, em consequência da raiva; em lugar da reação emocional quente a pessoa fica petrificada de raiva, ou num estado de choque, qualquer que tenha sido a emoção original. Ela fica literalmente com as mãos frias, tiritando, pois todos os vasos sanguíneos se contraem e, ao invés de ficar com a cabeça quente, sentindo a emoção que abrasa, a pessoa fica fria. O gelo é um passo adiante, quando a emocionalidade cai no outro extremo. Assim, isso está de acordo com o fato de que os gigantes na mitologia são os soberanos dos domínios do gelo e do fogo, desde que ambos são estados não humanos e completamente fora do equilíbrio. (VON FRANZ, 1985, p. 267-268)
O monstro de gelo simboliza o terror de Elsa
na interação com outras pessoas.
     O monstro de gelo é uma personificação do medo e do terror de Elsa que se volta agressivamente contra todos que se opõem à liberdade recém-conquistada. Elsa se torna uma vilã, como ocorreu com Malévola (2014), cuja estória também foi interpretada e está disponível aqui. Totalmente frozen (congelada), só conseguirá trazer a irmã petrificada de volta e descongelar o reino quando descobrir a capacidade de amar a si mesma (o que ocorre no exílio) e, consequentemente, aos outros, por meio da irmã. No final do filme ocorre um equilíbrio nas atitudes de introversão e extroversão extrema das irmãs: uma passa a ficar à vontade para usar sua capacidade criativa junto à população; a outra não se entrega a Kristoff de pronto, como fez com Hans, o qual se revelou um patife.
     Cabe aqui mais uma observação sobre Alef. Como personificação do novo jeito de ser de Elsa, ele almeja conhecer o verão e o calor, que são elementos opostos à sua essência gelada. Apenas quando sua criadora se harmoniza, ele é capaz de manter-se íntegro mesmo vivendo em meio ao calor, por meio de uma nuvenzinha gélida própria, criada por Elsa. É como se esta entendesse a necessidade de sua conexão com seu Si-mesmo, seu núcleo de integração e sustentação de seu ser psíquico. Nesse sentido, a nuvenzinha que faz cair neve constante sobre o boneco animado parece figurar um eixo de ligação do seu eu com o Si-mesmo. Olaf é um ser feito de neve, que é, no entanto, caloroso, engraçado e extrovertido também. Ele comporta qualidades totalmente opostas, e por isso simboliza a totalidade da protagonista que a leva à completa realização: aceitação do seu ser por si mesma e pelos outros, e amor por todos estes.
     Semelhante ao gênio esquizofrênico, Nash, Elsa ficara isolada por imposição, devido à sua grande capacidade criativa. Do mesmo modo ela quis se libertar da “castração” um dia imposta por seus pais e depois prolongada por ela mesma. Só quando conseguiu ficar livre para se expressar sem medo de rejeição, quando finalmente pôde sentir e manifestar o amor que nutria pela irmã com a sua perda, é que se conectou novamente à realidade.
     No entanto, isso não teria sido possível sem o amor incondicional da irmã, que insiste em trazê-la de volta ao lar, à realidade. Ao perceber Anna totalmente congelada, produto de seu descuido, Elsa é obrigada a sair de seu casulo congelante, enfrentar a realidade e extravasar seu amor. Mas aí tudo se transforma, pois percebe que todo o inverno em que vivia constituía uma vigorosa projeção do que se encontrava em seu interior. Talvez até o congelamento da sua irmã fosse uma projeção que ela teve que descartar por sentir-se genuinamente aceita e amada. Então Elsa se torna capaz de usar sua capacidade criativa totalmente em sintonia com todos ao redor. Ninguém mais a teme, pois ela não mais teme a si mesma. Ninguém a repele ou a encarcera, já que ela conseguiu libertar o seu ser com o autoconhecimento e, acima de tudo, com o amor próprio e o da irmã.

Ao ser capaz de expressar seu amor pela irmã,
Elsa consegue se recuperar.



REFERÊNCIAS

As citações neste texto possuem referências que podem ser encontradas aqui (ou vá à página Referências, neste site).
Link: http://www.vagalume.com.br/frozen-trilha-sonora/let-it-go-idina-menzel-traducao.html#ixzz3EdjDaZVE