Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

Comentários sobre o livro "O Papalagui"

Livro muito original. São preciosas cem páginas que retratam a visão de um "primitivo" [sim, entre aspas mesmo!] - Tuávii, chefe da tribo Tiavéa, das ilhas Samoa - sobre a Europa "civilizada". "Papalagui" quer dizer "homem branco". Apesar de ter sido escrito entre 1914 e 1915, sem dúvida retrata ainda com fidelidade a civilização atual. Na verdade o livro se dirigia apenas aos polinésios, seu povo, o que faz com que a obra seja ainda mais interessante, pois percebe-se uma ingenuidade e uma despretensão extremas. A humildade de seus comentários formam críticas perspicazes ao modo de viver moderno. Até o que chamaríamos "análise marxista" se encontra no livro de uma forma simples e bem clara. O livro é muito útil porque passa uma visão de um indivíduo muito ligado à natureza sobre a nossa cultura, perpassando desde nossos vestuários e moradias até costumes que achamos positivos, tais como cinema e jornalismo. Nos mostra o seu outro lado, de uma forma que seríamos incapazes de perceber. Vale a pena ler.

Algumas pérolas do livro:

"Os Brancos corromperam os missionários para que eles nos enganassem com as palavras do Grande Espírito. Pois o metal redondo e o papel pesado, que eles chamam dinheiro, é que são a verdadeira divindade dos Brancos."

"Existe aí uma grande injustiça que o Papalagui não nota, nem quer pensar sobre isto para não ser obrigado a reconhecer que ela existe. Nem todos que têm muito dinheiro trabalham muito."

"Ó irmãos, acreditai no que vos digo: ocultei-me atrás dos pensamentos do Papalagui e vi o que ele quer, como se o iluminasse o sol do meio-dia. Destruindo, onde quer que vá as coisas do Grande Espírito, o Papalagui com sua própria força pretende dar vida, novamente, àquilo que matou, convencendo-se assim de que é o Grande Espírito porque faz muitas coisas."

"Mostra que é muito pobre aquele que precisa de coisas em quantidade porque, assim, prova que lhe faltam as coisas do Grande Espírito." 

"Ó irmãos, que é que pensais do homem cuja cabana é tão grande que dá para uma aldeia inteira e que não oferece ao viajante o seu teto por uma noite? Que é que pensais do homem que tem um cacho de bananas nas mãos e não dá uma só fruta a quem, faminto, ávido, lhe pede? Vejo a zanga nos vossos olhos, o maior desprezo nos vossos lábios. E vede que é isso que o Papalagui faz a todo momento. E mesmo que tenha cem esteiras nenhuma dá ao que nenhuma tem. Pelo contrário, acusa-o e censura-o por não ter. Pode estar com a cabana cheia de mantimentos até o alto, muito mais do que ele e sua aiga comem em 100 anos. Não sairá à procura dos que não têm o que comer, dos que estão pálidos de fome. E há muitos Papalaguis pálidos de fome. A palmeira deixa cair as folhas e frutos que estão maduros. Mas o Papalagui vive como se a palmeira quisesse retê-los. "São meus! Não os tereis! Jamais deles comereis!" Mas como faria então a palmeira para dar novos frutos? A palmeira é muito mais sábia do que o Papalagui."

"Assim, todas as coisas prodigiosas do Papalagui têm um lado fraco, oculto em algum lugar; máquina não há que não precise de quem a vigie, de quem a toque; máquina não há que não contenha uma secreta maldição. A mão poderosa da máquina faz tudo, sim, mas enquanto trabalha, vai devorando o amor que encerram as coisas que fazemos com as mãos. De que me serve uma canoa, uma clava talhada pela máquina? Uma máquina é um ente frio, sem sangue, que não sabe falar do seu trabalho, que não sorri quando acaba; que não pode mostrá-lo ao pai e à mãe para que eles também fiquem contentes. Como é que poderei amar minha tanoa se uma máquina é capaz de fazer outra igual a qualquer momento, sem o meu trabalho? Aí está a grande maldição da máquina: é que o Papalagui já não ama coisa alguma porque a máquina pode refazer tudo, a qualquer momento. Para que a máquina lhe dê os seus prodígios sem amor, o homem deve alimentá-la com o próprio coração.

O Grande Espírito é que determina, sozinho, as forças do céu e da terra; é quem as reparte como lhe parece melhor. Não cabe ao homem fazer isso; não é impunemente que o Branco tenta transformar-se em peixe, ave, cavalo e verme. E com isso ganha muito menos do que confessa. Quando atravesso uma aldeia a cavalo, vou mais depressa, é claro; mas quando caminho a pé, vejo mais coisas e o meu amigo pode me convidar para entrar em sua cabana. Raramente se ganha de verdade quando se chega mais rapidamente ao que se procura. Mas o Papalagui está sempre querendo chegar depressa ao seu objetivo. Quase todas as suas máquinas servem, apenas, para chegar rápido a certa meta. Mas, quando chega, outra meta o atrai. O Papalagui desse modo vive sem jamais repousar; e cada vez mais desaprende o que é andar, passear, caminhar alegremente em direção ao que não procuramos mas vem ao nosso encontro."

"Quem lê o jornal não precisa ir a Apolima, Manono, Saváii [ilhas de Samoa] para saber o que os amigos fazem, pensam, comemoram. Pode-se ficar deitado, calmamente, na esteira que os muitos papéis contam tudo."

"Mas não é só isto que faz do jornal uma coisa tão ruim para a nossa mente, quando nos conta o que aconteceu; é que ele também nos diz o que devemos pensar a respeito disso e daquilo, a respeito do nosso chefe, dos chefes de outros países, de tudo quanto ocorre, de tudo que a gente faz. O jornal gostaria de fazer que todos os homens pensassem igual; o jornal é inimigo da minha cabeça, é inimigo do que eu penso."

A intuição e a sensação em dependentes de drogas na perspectiva da psicologia analítica

Clique aqui para acessar a pesquisa.

RESUMO

Este  trabalho  investigou a  relação das  funções  intuição e  sensação com a dependência química sob o enfoque da Psicologia Analítica. Empregou-se pesquisa bibliográfica e estudo exploratório. A pesquisa  foi  realizada em uma Casa de Recuperação de Dependentes da cidade de Taubaté e contou com a participação de dezoito internos, nos quais houve a aplicação do Questionário de Avaliação Tipológica  – QUATI  (Zacharias, 2000). Destes,  foram selecionados dois  voluntários para entrevista de anamnese que apresentavam as  funções  investigadas  como  principal,  os  quais  configuraram  os  tipos  sensitivo  e  intuitivo,  ambos introvertidos. Verificou-se a existência de  influência recíproca entre as funções estudadas e a dependência química, assim como de  indícios de  influência da tipologia psicológica na adaptação  e  na  seleção  dos  internos  à  Casa  de  Recuperação.  Os  achados  deste  estudo  podem contribuir para com as  instituições de recuperação, com as práticas de prevenção, com as  intervenções  terapêuticas e com os dependentes químicos.  Indica-se  também a necessidade de novas pesquisas com referência à relação estudada.


ABSTRACT

This study  investigated  the connection of  intuition and  feeling  functions with  the drug addiction  from  the perspective of Analytical Psychology. For  that,  it used  the  literature review and exploratory study. The survey was conducted  in a House of Dependent Recovery in Taubaté and was taked part by eighteen inmates, in which there was the implementation of the Questionário de Avaliação Tipológica  (Assessment Questionnaire Tipológica)  - QUATI (Zacharias, 2000). Of  these,  two volunteers were  selected  for anamnesis  interview who presented  the main  features  investigated, which  shaped  the  sensitive  and  intuitive  types,  both introverts. It was found that there  is  interplay between the functions being studied and addiction as well as evidence of  the  influence of psychological  typology  in  the adaptation and  the selection of  inmates  to  the House of Recovery. The  findings of  this study may contribute  to the  institutions  of  recovery, with  the  practices  of  prevention,  treatments  and with  the  drug addicts. It is also stated the need for further research with reference to the connection studied.

FICHA RESUMIDA DA OBRA
Inf. publicação
TCC/Monografia - Português
Classificação
150.195 TCC
Notação
R433i
Ent. princ.
Resende, Charles Alberto
Título
Imprenta
Taubaté, 2009
Desc. física
139 p. : il.
Bibliográficas
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Departamento de Psicologia, Universidade de Taubaté, Taubaté, 2009.
Ent. de assuntos
1. Droga
2. Droga-dependência
3. Psicologia analítica
4. Tipos psicológicos
Ent. sec.
I. Rezende, Manuel Morgado (Orientador)
Link do título
http://sibi.unitau.com.br/sophia_web/index.asp?codigo_sophia=112699

Alice no inconsciente coletivo (2ª parte)

(Clique aqui para ir à 1ª parte deste texto)

A RAINHA BRANCA (MIRANA) – Enquanto a Rainha Vermelha é muito preocupada com sua cabeça, a Rainha Branca inquieta-se com suas mãos, que mantém constantemente à mostra, como se as usasse para se proteger do contato com os outros. Curiosamente, é Iracebeth que faz o que quer; Marana, não. Esta não coloca a mão "na massa", pois afinal é branca, pura, cheia de boas intenções. Diz que não é capaz de machucar qualquer animal. A Rainha Branca possui uma armadura que um campeão deverá usar no combate ao dragão Jaguadarte. Na medida em que a possui e lhe falta a espada – ligada à ofensiva, parece ocupar-se apenas com medidas defensivas – qualidade daquele artefato. Fez também um voto de não machucar nenhum ser vivo, o que é um compromisso com figuras externas. Costuma falar com árvores – o que denuncia sua ligação com a natureza, e o povo a admira. Preferiu estudar o domínio sobre as coisas mortas e é amiga dos seres vivos, ao contrário de sua irmã. Tem a “cabeça mínima, miniatura de cabeça”, nas palavras de Iracebeth, pois não precisa usar de artimanhas para dominar tudo ao seu redor. É espontânea, mas ao mesmo tempo tem modos teatrais e solenes. Apesar de ser branca e viver em um castelo branco, possui lábios, olhos e unhas pretas. Isso evidencia um contraste, uma composição de opostos na mesma personagem. Por isso, parece representar, junto com Absolem, o qual hospeda em seu reino, o Si-mesmo em Alice.
Porém, como guardiã da armadura e devido aos modos que apresenta, parece compensar a falta de persona desta. Persona no sentido atribuído pelos primitivos. Eles
usam máscaras nas cerimônias do totem, como meios de exaltar ou transformar a personalidade. Desta forma, o indivíduo favorecido é aparentemente afastado da esfera da psique coletiva e, na medida em que consegue identificar-se com sua persona, é realmente afastado. (JUNG, 1991a, p. 36)
A persona-armadura de Alice lhe dá condições de voltar à vida real ao término da consumação de sua fantasia e lidar com o coletivo. Mirana parece preparar para que Alice possa usar sua persona adequadamente, de modo que faça justiça inclusive à sua feminilidade e individualidade. Isso sem contaminar-se novamente com a coletividade. O homem primitivo sentia necessidade de ritos e máscaras; o homem moderno só pode contar com seus sonhos e sua imaginação ativa.
Para JUNG (1991c) a persona corresponde a uma atitude momentânea que se acomoda às circunstâncias e às expectativas em geral. É uma máscara (ou, no caso, uma armadura), um complexo funcional, que se ajusta, por um lado, às intenções do sujeito, e por outro, às opiniões e exigências do meio ambiente, e impede a manifestação da individualidade. Refere-se exclusivamente ao relacionamento do sujeito com o mundo externo. A identificação com a persona pode enganar no mínimo as outras pessoas e muitas vezes o próprio indivíduo. Por outro lado, pessoas que desvalorizam a persona são indivíduos ingênuos, e que tropeçam em várias situações cotidianas com penosas dificuldades. Mulheres sem persona costumam ser temidas por sua falta de tato, sempre incompreendidas e cegas para o mundo (JUNG, 1991b). Seu maior exemplo é a Rainha Vermelha.
Alice precisa enfrentar e “pela cabeça” a infecção pela coletividade, o grande problema que não foi capaz de superar por muito tempo. Precisa tomar as próprias decisões da vida e se haver com as consequências. Tudo tem um preço. Durante o filme Alice confronta os dois opostos de si mesma – Iracebeth e Mirana – e leva o melhor dos dois, apesar deles acabarem se separando novamente. Mas o conhecimento advindo do seu embate ficou e transformou a personagem. Sua persona acaba se constituindo como uma armadura, que precisa usar para saber se impor aos circundantes e tomar as rédeas da sua vida. A ênfase agora recai em Mirana, que passou a reinar no mundo subterrâneo.
Sim, a Rainha Branca fornece uma persona de guerreira e encarna também o feminino. Como símbolo do Si-mesmo detém os opostos em si, e usa de dons sobrenaturais. Apoia uma mulher em uma época de preconceitos, rigidez e pressões, e fornece-lhe os instrumentos interiores para seu sucesso.

CHAPELEIRO MALUCO: O Chapeleiro não expressa suas emoções explicitamente. Estas se refletem mais intensamente em seu rosto e em sua roupa. Ansiosamente aguardava a volta de Alice e é, sem dúvida, seu único amigo de verdade, pois tem-lhe confiança apesar de todos, até ela mesma, a desacreditarem. É destemido e extrapola limites para protegê-la com o risco da própria vida.
Quando criança, ao relatar ao pai os sonhos excêntricos que tinha, temia ser louca. O pai a consolou, dizendo que as melhores pessoas são assim – uma possível referência às pessoas criativas. E provavelmente seu pai se considerava muito original e criativo, pois instantes antes de encorajar a filha, em uma reunião de negócios, seus colegas criticaram a impossibilidade do seu empreendimento. Mas seu espírito ousado disse: “a única forma de chegar ao impossível é acreditar que é possível”.
O trio maluco, do qual o Chapeleiro faz parte, parece retratar o temor de Alice da insanidade. De alguma forma, parece que seu complexo de inferioridade se ligava também a esse medo de ser diferente, original, criativa, o que acaba por efetivar-se de maneira adaptada mais tarde. No fundo, a reserva em afirmar-se provavelmente é composta de uma série de fatores, dentre eles a originalidade. As pessoas que se questionam se estão ficando loucas geralmente não estão cientes do significado de sentimentos, pensamentos e conflitos que não lhe são familiares, e que surgem no processo de desenvolvimento psicológico. Este é com frequência mal interpretado como problema pessoal ou doença mental (ROSSI, 1982).
Segundo Jung o animus tem seu germe no pai da filha. (JUNG, 2000). Ele constitui tudo o que fica fora do campo de interesse da mulher e que normalmente importa ao homem. Assim, o campo do comércio, da política, da ciência, etc., tudo o que tem a ver com a realização de atividades materiais e liga-se ao homem, é relegado, em geral, à sombra da consideração feminina. Por isso o animus gera opiniões normalmente não pensadas, pois não foram antes objeto de atenção da mulher. Essas opiniões existem já prontas e a mulher lhes tem uma convicção firme e resoluta, como se fossem verdades inquestionáveis (JUNG, 1991b).
O Chapeleiro faz várias afirmações que merecem uma reflexão mais detida, pois, devido à imaginação ativa, elas não parecem simples opiniões sem sentido. A afirmativa do Chapeleiro – “O mais legal de viajar é de chapéu”, acerca-se de duas interpretações. A primeira tem a ver com a impossibilidade de se viajar de chapéu, o que lembra a ousadia do pai de Alice em querer concretizar o impossível. A segunda, simbólica, liga-se ao significado do chapéu enquanto protetor da cabeça e do seu conteúdo. Além do sentido proposto por Cirlot (1971), anteriormente, o chapéu tem o papel de proteger a cabeça tanto do sol quanto da chuva. Aquele se associa ao deus Apolo, à razão. A água vincula-se ao extremo oposto: à emoção, ao inconsciente (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1990). Conclui-se que o chapéu de alguma forma parece encontrar uma função intermediária, equilibrante, enquanto protege seu portador dos dois extremos psíquicos. E por não ficar nem lá, nem cá, dá motivo a receber o rótulo de maluco, junto ao seu portador.
Esse segundo significado liga-se perfeitamente ao enigma do Chapeleiro proposto a Alice: “Qual a semelhança entre o corvo e a escrivaninha?”. Ora, o corvo, como a águia, a fênix e o abutre, é um conhecidíssimo símbolo alquímico.  É uma criatura noturna e está associado ao Diabo, à nigredo e ao inconsciente (JUNG, 1990). A escrivaninha vincula-se às atividades do intelecto, a Apolo – “deus solar que cruza os céus numa carruagem resplandecente” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1990, p. 66). E isso, por coincidência, está de acordo com o simbolismo do chapéu...
Tudo indica que quando o pai de Alice morreu, desvaneceu com ele seu verdadeiro ser, seu vigor, sua força... A ousadia que conquistara com o incentivo do pai. “Você não é a mesma de antes. Você era muito mais ‘muitaz’. Você perdeu sua ‘muiteza’”, constata o Chapeleiro. Devido à objetivação do animus em sua imaginação ativa, este se diferencia do ego de Alice e agora cumpre sua verdadeira função de porta-voz do Si-mesmo, do inconsciente coletivo, de seu autêntico destino. Sem essa diferenciação entre o que é a “voz” de Alice e o que é a “voz” do Chapeleiro-animus, o máximo que ela conseguiria é pensar: “Eu sou falsa, perdi minha ‘muiteza’, não sou eu mesma. E devo continuar a ser assim, senão serei criticada e não aceita”. Em outra ocasião, o Chapeleiro, fazendo chapéus para Iracebeth, teme estar ficando louco. Alice o aceita incondicionalmente, dizendo, como o pai fazia consigo, que as melhores pessoas são assim. Sem a objetivação da imaginação, ela seria o Chapeleiro e temeria estar ficando “pirada”. Quando a mulher identifica-se com as afirmações do animus ela as aceita sem refletir, sem tomar distância objetiva delas para avaliá-las com mais rigor (JUNG, 1991b). Na imaginação ativa ocorre esse afastamento necessário dos conteúdos do inconsciente, e as coisas não ficam mais misturadas na mente. O indivíduo aprende a diferenciar sua consciência dos conteúdos do inconsciente isolando-os através da personificação, relacionando-se com eles. Esse processo tira a força do inconsciente drenando-a para o ego (JUNG, 1991a). E o que poderia ser um fim melancólico transforma-se em desafio, em encorajamento: “Perdi minha muiteza, né?”, diz Alice indignada. Então ela enfrenta temores até óbvios – passar sobre as cabeças decepadas pela Rainha Vermelha. Mas essa ousadia ainda não é totalmente autêntica. É uma reação passiva a um comportamento de outra pessoa. Apesar disso, é quando decide pela primeira vez envolver-se na trama da imaginação ativa, colocando seus sentimentos, que se posiciona no seu verdadeiro lugar. Mas aí ela parte para o outro extremo. Por isso torna-se de novo gigante, inflada – daí Iracebeth tê-la como amiga.
Quando Alice teima com o Chapeleiro em entregar Vorpal à Rainha Branca, este pergunta “Por que você é ora pequena demais, ora grande demais?”. Ela ainda não está do seu tamanho certo: está inflada e não aceita os conselhos do seu animus. Em outra cena ele lhe diz: “Agora você é você mesma! É um tamanho digno da Alice”. Isso ocorre quando a protagonista consegue respeitar os conteúdos do inconsciente, tomando uma distância equilibrada, que não equivale ao desprezo nem à inflação. A sós com o Chapeleiro no castelo de Mirana, ela atesta que ele é fruto da sua imaginação. Ele se entristece, pois é como se sua protegida não reconhecesse sua realidade. “Mas você teria que ser meio louca para sonhar comigo”, argumenta o animus. Alice concorda. Ao confirmar a ideia do amigo interior, ela relativiza sua própria racionalidade em favor do inconsciente, conferindo-lhe mais realidade. E isso torna o confronto com o Jaguadarte ainda mais aterrador. Tanto melhor, pois a transformação de sua personalidade se afigura ainda mais intensa.
As imagens do inconsciente tomam uma atitude favorável ao ego quando este lhes mostra uma postura mais amigável (JUNG, 1987). É o que ocorre com o Chapeleiro e companhia com relação ao enfrentamento da Rainha Vermelha e seu séquito. Quando iam cortar a cabeça do Chapeleiro este desmascara todos os seus bajuladores. Ele mostra que o poder das aparências é enganador, baseado na bajulação, na hipocrisia, pois o real poder encontra-se no amor, encarnado por Mirana, da qual ele é empregado. Esse enfrentamento é uma prefiguração do que será realizado por Alice. Mas o mais importante nessa ajuda que obtém do animus, é o fato de que ele, uma vez diferenciado do ego, é capaz de socorrê-lo, ajudando-o a cumprir o fim pretendido pelo Si-mesmo – o oráculo, e não tornando-se um obstáculo às suas pretensões.
“Você não mata. Tem alguma ideia do que a Rainha Vermelha fez?”, pergunta o Chapeleiro quando ela se nega cumprir o seu destino. A Rainha Vermelha parece ser a atitude de Alice de desconsideração para com sua individualidade, com o que há de mais exclusivo, potencial, poderoso, e ao mesmo tempo frágil e indefeso, e que é personificado por todos os personagens bem-intencionados de sua imaginação ativa. A atitude irada (Iracebeth) para com seus conteúdos mais puros e autênticos, a tortura internamente, de um modo que ela nem faz ideia. Mas o Chapeleiro sabe. E a grande revolução parece ter ocorrido com a morte do pai, que teve conduta oposta à da mãe, que se conforma gentilmente às opiniões circundantes. É a identificação com a mãe o grande monstro que a personagem deverá enfrentar. Terá que criar uma identidade totalmente original – tarefa com que se defrontam os adolescentes (JUNG, 2001).
O passo maluco assinala a originalidade do Chapeleiro reassumida graças ao confronto de sua amiga. Suas ideias não serão mais consideradas por Alice como meras maluquices. Ela as levará a sério em seus empreendimentos no mundo material – até dançará o passo maluco em público para despachar de vez a lembrança do que teria feito se não tivesse entrado no buraco do coelho. Fazer o que não se espera, totalmente desarticulado com as expectativas coletivas (o Chapeleiro roda o quadril e a cabeça no eixo do corpo), pode ser consequência da legitimidade de caráter, e não simples “piração”. Alice integrou a atitude de aceitação da “loucura”. Paulo, em I Coríntios 2: 14, diz que “o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (BÍBLIA, 1981, p. 230). A protagonista finalmente incorpora e aceita em sua vida as coisas de Absolem-Deus.

CAPTURANDAM e JAGUADARTE – No momento em que Alice duvida que é realidade o que vivencia, que seu mundo interno é real – apesar de retratado em sua imaginação, ela é ferida, pois o inconsciente é muito real na pele de Capturandam. Quando desprezado o inconsciente pode deixar profundas cicatrizes através de eventos que escapam ao controle do ego: acidentes, lapsos de memória, arrependimentos no falar, doenças, etc. (JUNG, 2001). Ela é ferida pelo que acha que é irreal e o inconsciente compensa sua descrença na realidade do mundo interno, desacreditando no ego de Alice, tornando-a também “irreal” – daí a perda do olho direito (lado da consciência), pois não quer mais “vê-la”. Essa descrença na realidade do inconsciente reflete na vida de Alice na desconsideração das pessoas em sua capacidade de dirigir a própria vida. Quando percebe o que faz consigo, a projeção sobre os outros é retirada e, como consequência, a responsabilidade por esse conhecimento fica sobre ela, junto à capacidade de decidir.
O monstro “psicologicamente, representa o perigo de ser devorado por forças destrutivas de alguma espécie, um perigo que pode afetar somente as partes mais nobres do ser humano, como seu senso moral ou sua razão”[1] (CIRLOT, 1971, p. 213). Isso indica a espécie de terror porque Alice está dominada quando lhe vem à mente enfrentar o Jaguadarte. Ela já percebeu na pele o que é enfrentar um monstro de verdade – o Capturandam, e agora terá que enfrentar um ainda mais temível. Percebe que os monstros interiores são reais e podem feri-la. Sente medo real, pois eles não são apenas vento, apesar de encarnarem através da imaginação. O monstro pode afetar-lhe o juízo moral e a razão. Mas será que o tipo de domínio que ela procura para si afeta a moral no sentido de prejudicar outra pessoa? E a razão? Está preocupada com isso, mas terá que cortar essa “cabeça” monstruosa que tanto a perturba, que tanto mexe com seu tino.
“No plano psicológico, eles aludem aos poderes de base que constituem os mais profundos estratos da geologia espiritual, fervente como um vulcão, até que entram em erupção na figura de uma aparição ou atividade monstruosa. Diel sugere que eles simbolizam um desequilíbrio de uma função psíquica: a efetiva excitação do desejo, espasmos da imaginação inconstante, ou intenções impróprias” (CIRLOT, 1971, p. 213)[2]
De fato, Alice parece temer muito a realização no plano material dos seus desejos mais íntimos, as sugestões de sua imaginação indomada e seus propósitos impensáveis para a época.
Na única vez em que Alice cochila na aventura, ela o faz na presença do monstro que a feriu, denotando uma entrega ao terror de ser devorada. Parece se render, como se desse a entender que não dá mais conta. Quando o ego afrouxa suas defesas o inconsciente corresponde com benevolência (JUNG, 1987). Capturandam fica seu amigo, deixa-lhe pegar a chave do baú onde Vorpal está guardada, lambe sua ferida e ainda a resgata do exército da Rainha Vermelha.
O Jaguadarte é o trunfo de Iracebeth. Ganhar dele é conseguir a aliança do povo, que deixa de ser intimado pela tirana. Simbolicamente, a morte do dragão é a transformação dos valores introjetados. A liberdade conseguida e a energia liberada do complexo transforma as condições interiores e desembaraça Alice de sua opressão. O sangue do dragão vira o passaporte para o mundo material: a regressão acaba, pois os obstáculos exteriores agora podem ser enfrentados.

O BARALHO DE CARTAS, O XADREZ E A ESPADA VORPAL – Outro aspecto que fica mais evidente no final do filme é a rivalidade do exército das cartas de baralho, de Iracebeth, e do exército das peças de xadrez, de Mirana. O jogo de cartas parece estar mais voltado à esperteza, à leitura corporal, ao disfarce. As cartas ficam ocultas ao oponente e o raciocínio volta-se à sua revelação. Dessa astúcia pode depender a derrota ou a vitória. Por ser executado com base na ocultação de elementos envolvidos no jogo, inclusive de reações corporais (em certas modalidades), pode dar margem a trapaças. Percebe-se que sua psicologia está totalmente de acordo com a da Rainha Vermelha.
No jogo de xadrez ocorre o contrário: todas as peças ficam visíveis. Ambos os jogadores só dispõem de sua atenção e raciocínio. Trapaças são possíveis, mas dependem da desatenção e não envolve ocultação de qualquer espécie, exceto em algum tipo de jogada para ocultar o verdadeiro objetivo. Está mais associado ao intelecto e é usado para exercitar o raciocínio. Como as peças de xadrez usadas no filme são brancas, é de se supor que o papel das peças pretas é ocupado pelas cartas. Vorpal ocupa seu lugar legítimo junto às peças de xadrez e Mirana.
Os fundadores de cidade chineses usavam espadas (Iracebeth fundou um reino próprio com o roubo de Vorpal). A espada é instrumento do cavaleiro – defensor das forças da luz (peças brancas) contra as trevas (as cartas). Na alquimia, ela simboliza a purificação pelo fogo. Além disso, possui um papel espiritual, um poder mágico, seja no raiar da história como no folclore nos dias atuais, de repelir os poderes das trevas, e normalmente figura em danças apotropaicas, as quais tem essa finalidade (CIRLOT, 1971). No filme, o Chapeleiro não a usa, mas executa tal dança como que para “fechar” a batalha e selar as execuções.
Nos últimos instantes Absolem revela que a espada sabe o que quer e que só precisará segurá-la. Isso não corresponde à verdade quando se observa a luta de Alice contra o dragão. Mas é totalmente autêntico se visto de forma simbólica: a análise intelectual não necessita de esforço físico. Vorpal é a antiga adversária do Jaguadarte, pois nenhum problema que demande apenas organização do pensamento pode lhe resistir. Mas seu poder pode ser obscurecido se não for usado de maneira consciente, o que ocorria quando estava sob o poder de Iracebeth: não há maior vitória sobre a razão do que a das emoções.

OS VÁRIOS ANIMAIS (Bayard, Cheshire – o gato risonho, Dormidongo, etc.) – Significam os vários aspectos da personalidade ainda não suficientemente humanizados. Encontram-se ainda no estágio instintivo, animal, daí assumirem essa forma chamada “teriomórfica”.
Este teriomorfismo outra coisa não é senão uma ilustração do si-mesmo inconsciente, que se revela através de impulsos de natureza instintiva (“animais”). Estes impulsos são constituídos, de uma parte, por movimentos que podemos atribuir, sem dificuldade, a determinados instintos conhecidos, e de outra parte, por certezas, convicções, compulsões, idiossincrasias, fobias, que podem ser contrárias aos chamados impulsos biológicos [...]. (JUNG, 1990a, p. 136)
Para compreensão do filme como um todo não há necessidade de discorrer mais extensamente sobre esses e outros personagens.
“Alice no país das maravilhas” é um filme que fala ao coração de homens e mulheres. Na verdade, ele pode ser ainda mais voltado à psicologia masculina se se pensar que seus autores – do filme e do conto – eram homens. Dessa forma, Alice representaria sua anima*, isto é, seu estado subjetivo, interior. O que ocorre com a protagonista representaria o processo de evolução de sua relação com seu inconsciente. Mas isso não é necessário.
O simbolismo do filme é de tão rico e intuitivo que pode ser facilmente entendido por todo aquele que a isso se proponha. E no mínimo oferece uma compreensão direta e imediata, sem necessitar de trabalhos interpretativos. Ela ecoa no coração de todo aquele que anseia por mais luz, por mais autoconhecimento.

* A definição de anima se encontra no Vocabulário.

Alice no inconsciente coletivo (1ª parte) - reeditado em 19/07/10

INTRODUÇÃO
O filme “Alice no país das maravilhas”, dirigido por Tim Burton (2010), e baseado na obra de homônima de Lewis Carroll, é riquíssimo em simbolismo. Devido a essa peculiaridade, o filme é ideal para análise do ponto de vista da psicologia de Carl G. Jung, um renomado psiquiátrica e psicólogo que criou termos muito conhecidos hoje, tais como: extroversão, introversão, arquétipo, inconsciente coletivo, etc. Esta análise junguiana visa oferecer uma forma didática de se compreender a psicologia do filme e ao mesmo tempo uma explanação dos principais conceitos da psicologia de Jung.
“Alice no país das maravilhas” retrata a aventura interior de uma jovem no sentido de descobrir quem é, de se esforçar em definir seus próprios valores e, por conseguinte, seu destino, o qual se baseará nesses valores. Como essa empreitada constitui um motivo típico a todo ser humano, pode-se dizer que Alice faz uma jornada arquetípica à procura de si mesma. Segundo Jung (2001), os arquétipos são tendências instintivas no homem de se comportar de certo modo e de se representar determinados motivos. Eles se repetem em todo mundo, mesmo em lugares onde não é possível explicar sua presença através da hereditariedade. Tendem a se manifestar como fantasias ou como imagens simbólicas, da maneira que ocorre no filme abordado. São como uma tendência a não aprendida a vivenciar, avaliar e fazer as coisas de certo modo. Espécies de modelos invisíveis de imagens que podem ser percebidas. Os arquétipos podem evocar fortes emoções se o indivíduo se depara com alguma imagem ou situação que denote uma condição arquetípica. Daí mitos, lendas e filmes como “Guerra nas Estrelas”, “O Senhor dos Anéis” e “Alice no País das Maravilhas” excitarem tanto a mente dos seus leitores ou espectadores.
Pode-se afirmar que a aventura de Alice é uma espécie de sonho lúcido ou imaginação ativa involuntária. No sonho lúcido o ego descobre que está sonhando e ganha poderes sobre suas ações, pensamentos e atitudes. Em geral, não consegue alterar o cenário do sonho, mas pode confrontá-lo e influenciá-lo, assim como a outros personagens.
A imaginação ativa é uma técnica redescoberta por Jung e consiste em utilizar a autonomia do inconsciente, isto é, sua capacidade em influenciar a vontade do indivíduo em seus diferentes aspectos e funções. Essa autonomia do inconsciente se manifesta, por exemplo, quando aparecem pensamentos, sentimentos, lembranças, preocupações, medos, etc., indesejáveis, mas que o indivíduo é incapaz de banir de sua mente. Na imaginação ativa o sujeito se propõe a deixar a imaginação correr solta, sem domínio sobre o que aparece e suas ações, dizeres e atitudes. No entanto, ele mantém o domínio sobre seu eu. Em resumo, consiste em levar a sério o mundo interior enquanto realidade interna, tal como ocorre geralmente com a atitude que se tem para com o mundo exterior (JOHNSON, 1989). E é exatamente essa atitude que Alice desenvolve no País das Maravilhas ou inconsciente, lidando com seus diferentes personagens. Ela aprende a realizar o impossível, este que parece ser uma metáfora para a verdade interior, que atualmente parece estar tão distante do cotidiano, da individualidade, da racionalidade em voga, que é tido como muito difícil de ocorrer. O efeito da prática da imaginação ativa é a integração do que antes era rebelde ao eu. Este consegue novamente o domínio e a harmonia sobre suas funções por unificar-se com elas. A paz, como uma borboleta azul perambulando ao redor, se estabelece.
O filme em estudo ilustra com bastante coerência certos aspectos da individuação, dos arquétipos e aborda vários destes de forma tão clara que vale a pena analisá-lo como forma de explanação desses componentes do inconsciente coletivo.
ALICE – Alice é a personagem principal da história. Representa o ego, o centro de tudo o que alguém conhece acerca de si mesmo. O ego “é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa” (JUNG, 1990A, p. 1). E “atos conscientes” quer dizer ações baseadas no que a pessoa sabe de si, o uso da própria vontade com objetivos definidos. Tudo o que as pessoas conhecem sobre si mesmas forma o campo da consciência. O que lhes é desconhecido na própria personalidade forma o inconsciente. Só através do ego, e do conhecimento que tem de si mesmo, é possível ao homem fazer o que quer e mudar ou não o seu destino. Por isso só Alice pode matar o Jaguadarte. O monstro – e qualquer outro obstáculo, problema ou dificuldade, não morre, não é transposto, resolvido ou superado se não for pelas mãos do eu. Só o ego pode fazer alguma coisa com o que a personalidade se defronta. E se ele não faz, as coisas acontecem sem sua direção e o destino fica sem rédeas. Quando o indivíduo se defronta com uma dificuldade que não consegue superar ele regride a estágios anteriores de adaptação (JUNG, 1987). No caso de Alice isso corresponde à fase infantil, quando o pai ainda era vivo. Ela terá que aprender a extrair do inconsciente uma nova atitude que dê conta da situação.
Ocorre, porém, que Alice ainda é muito pouco “Alice”, no início. Falta-lhe “muiteza” (expressão usada pelo Chapeleiro Maluco), intensidade, profundidade. É muito superficial para a tarefa que tem que cumprir. Para realizar o seu destino, o seu ser, como uma Alice completa, precisa conhecer-se mais, assumir a responsabilidade pelo que faz como protagonista no próprio palco da vida, como diretora da sua vida. “O eu possui o livre-arbítrio – como se afirma, mas dentro dos limites do campo da consciência” (JUNG, 1990a, p. 4), isto é, quanto mais largo o campo da consciência, quanto mais o indivíduo se conhecer, maior o livre arbítrio, mais possibilidades se apresentam e podem ser concretizadas pelo eu.
Desde pequena Alice tem os mesmos sonhos ou pesadelos. Ocorre que eles sempre continuam a repetir, ou a se tornar cada vez mais intensos – no caso dos pesadelos, enquanto suas mensagens não forem compreendidas e integradas à vida (WHITMONT e PERERA, 1995).
E pode-se afirmar categoricamente que após sua aventura definitiva pelo País das Maravilhas, seus sonhos não mais se repetiram. Ela conseguiu transpor as lições obtidas em sua fantasia para o mundo real, e o encontro com Absolem-borboleta no final do filme é um sinal simbólico disso.
No início, vários aspectos da protagonista encontram-se inadaptados com sua idade atual. De alguma forma ela ainda é aquela filhinha do papai. Daí Absolem (a lagarta) chamá-la de “menina burra”, pois ainda é muito ingênua para sua idade. Não sabe nem quem é pois não tem contato com sua integridade, a totalidade do seu ser. Ela não sabe quais são seus valores e precisa desenvolvê-los.
Isso muda quando ela percebe que o sonho é seu e que deve assumir a direção do que acontece consigo. Ela diz ao cão Bayard: Desde que caí naquele buraco de coelho, foi me falado o que fazer, e quem devo ser. Fui encolhida, esticada, arranhada, e enfiada numa chaleira. Fui acusada de ser e não ser Alice, e esse sonho é meu! Eu decidirei daqui em diante”. Enquanto o ego não se dá conta do que ocorre em sua personalidade e não resolve assumir os próprios valores conscientes frente ao inconsciente, ele é levado por este e por suas várias figuras – complexos e arquétipos, contra sua própria vontade, a fazer até o que não quer. A totalidade da personalidade (consciência e inconsciente) é uma realidade objetiva, do mesmo modo como o são as condições exteriores. E do mesmo modo que estas, aquelas também nos limitam e resistem a qualquer mudança, segundo Jung (1990a). O eu, aliás, pode ser amplamente modificado e absorvido pelas partes da personalidade em desenvolvimento. É o que ocorre com Alice nesse ponto. Quando se dá conta do que está ocorrendo, ganha mais consciência e com isso mais poder sobre seu destino, o que é demonstrado pelo domínio sobre Bayard – ela o manda sentar, manda-o pegar o chapéu e o cavalga. A partir daí ela começa a tomar contato com seus temores mais profundos, pois passa pelas cabeças decepadas e se relaciona com a Rainha Vermelha. Isso tudo a modifica grandemente.
Outro aspecto que Alice irá trabalhar bastante em sua imaginação ativa (ou sonho lúcido) é sua atitude frente às tradições, às condutas estabelecidas pela sociedade. O filme parece retratar o confronto dos opostos tradição versus inovação e autenticidade. Isso está bem explícito quando a futura noiva dança quadrilha com seu par, Hamish, e demonstra enfado pela quadrilha, que consiste em meras imitações ou sequências predeterminadas e repetidas de movimentos. Todos parecem divertir-se com a dança, exceto a protagonista. Hamish não a diverte. É mais engraçado imaginar as damas de calça e os homens de vestido. Isso aponta para a tradicional repressão das mulheres no passado. O filme transcorre no início do século XX ou antes. Portanto, representa também o processo simbólico, em paralelo ao histórico, de estabelecimento dos direitos da mulher. Mas para Alice tudo são só visões – ela não as assume e não as materializa em sua vida.
A TOCA DO COELHO – O simbolismo da “toca” ou “buraco” é muito importante no contexto do filme e vai de encontro à busca de Alice:
Um símbolo muito importante, com dois aspectos principais: a nível biológico, ele tem o poder de fertilização e está relacionado com os ritos da fertilidade; no plano espiritual, que representa a "abertura" deste mundo para o outro mundo. O culto das "pedras perfuradas", de uma forma ou de outra é muito comum em todo o mundo. Eliade observa que, na região de Amance, existe como uma pedra em frente à qual as mulheres se ajoelham para rezar pela saúde de seus filhos. Neste dia, em Paphos, mulheres estéreis arrastam-se através do buraco da tal pedra. Os povos indianos primitivos estavam principalmente preocupados com o seu simbolismo a nível físico, identificando o buraco com os órgãos sexuais femininos, apesar de eles também tinham uma interface intuitiva consciência do fato de que os buracos podem representar a "porta de entrada do mundo", que a alma tem de cruzar, a fim de ser liberada do ciclo de karma. (CIRLOT, 1971, p. 149)
E para completar, o coelho, ao lado da papoula, do touro e da lebre, simboliza a fecundidade, de acordo com Cirlot (1971). A dificuldade de Alice parece ser justamente em torno de tornar-se ou não esposa, mulher e mãe. Se ela casar-se, será “fecunda”? Esse casamento dará “frutos”? Será esse seu destino como a verdadeira Alice? E ela volta-se para o reino subterrâneo após uma proposta de casamento: deve aceita-la ou não? Segundo Jung (1987), sempre que alguém encontra um obstáculo que não pode resolver, recua ao tempo em que se encontrava em uma situação parecida e tentará usar dos mesmos artifícios que empregava nessa época. Daí poder-se dizer que vira de novo criança. É o que ocorre com Alice: ela cai no País das Maravilhas de sua infância e de seus pesadelos, das emoções que não foram trabalhadas e examinadas.

ABSOLEM – LAGARTA E BORBOLETA: Absolem é o sábio, o absoluto. É o guardião do Oráculo, um documento antigo que mostra todos os fatos importantes do passado, do presente e do futuro da história do Mundo Subterrâneo. Absolem várias vezes desafia Alice a se entender melhor, forçando-a a se encarar para responder à difícil pergunta: “Quem é você?”. Sim, porque ela não sabe quem é, quais suas referências, o que realmente quer. Alice tem um destino, mas não sabe que o realizará ao fazer a jornada de ser a verdadeira Alice.
A borboleta simboliza a alma no sentido da vida – e não da espiritualidade, e a atração para a luz (Cirlot, 1971). O Sol era representado pelos astecas como uma borboleta. Esta é a liberdade da alma em relação ao corpo e um símbolo do renascimento (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1990). A lagarta é um ser rastejante que fica independente na forma de borboleta. Pode-se dizer que Alice “rasteja” em sua vida, ao contrário do dinamismo e brilho que alcança ao final da aventura.
Jung (1990a) adverte que os animais como símbolos expressam um estado de inconsciência dos conteúdos a que se referem. Estão muito distantes da consciência humana, do jeito humano de ser. Ele propõe inclusive que os símbolos animais estariam mais próximos da consciência na medida em que sua espécie se aproxima da espécie humana. Assim, uma lagarta estaria mais distante da consciência humana do que um coelho, por exemplo. Ele acrescenta que
[O si-mesmo] é a menor de todas as coisas que pode ser facilmente preterida e colocada de lado. De fato, ele precisa de ajuda e necessita ser percebido, protegido e como que formado pela consciência, e isto de tal modo, como se antes não existisse e
só tivesse sido chamado à existência pelo cuidado e dedicação do homem. Mas, muito pelo contrário, a experiência nos mostra que ele existe há muito tempo e é mais antigo do que o eu; e é nada mais nada menos do que o secreto “spiritus rector” (espírito diretor) de nosso destino. (JUNG, 1990, p. 158)
É exatamente essa característica do Si-mesmo abordada nessa passagem que Absolem parece expressar. Como lagarta é a menor de todas as coisas no País das Maravilhas e passível de facilmente ser colocada de lado. Absolem tem uma aparência de idoso e de eternidade, como se sempre vivera além do tempo. Simultaneamente, constitui o espírito diretor do destino da personagem, expresso no oráculo. O embate de Alice com as diversas situações em sua trama interna parece afetar a lagarta, pois o momento em que responde convictamente quem é, coincide com a formação da crisálida. Sem saber, quando decide se confrontar com a Rainha Vermelha e se depara com a necessidade de matar o Jaguadarte, ela está fazendo contato cada vez mais estreito com o Si-mesmo, que parece ser também representado pelo Coelho Branco e pela Rainha Branca, mas como expressões de aspectos diferentes. Mirana, a dimensão mais humana do Si-mesmo na protagonista, concorre para que esta estabilize em sua verdadeira medida (o tamanho da armadura), pois só assim vencerá o monstro. O Coelho Branco e Absolem representam impulsos instintivos mais inconscientes e impulsivos, em comparação com Mirana, da totalidade de sua personalidade. O primeiro tem a propriedade do Si-mesmo em iniciar o indivíduo na aventura da busca pela sua essência e individualidade, em colocar o sujeito na trilha da individuação. Pode-se dizer que o Coelho Branco encarna o aspecto iniciatório do Si-mesmo, que aponta o momento adequado ao ego a despertar para certos valores – o coelho indica a Alice que já está na hora (JUNG, 2001). Absolem também carrega esse sentido iniciatório, mas tem mais a ver com a transformação, com a necessidade de morrer e despertar para nova vida, de atentar para quem se é realmente, de se questionar quanto aos próprios valores que vão dirigir o indivíduo ao seu destino.
Nos momentos finais do filme, a Rainha Branca diz: “Alice, não pode viver para agradar os outros, porque quando for enfrentar a criatura estará sozinha”. Isso equivale a dizer que ninguém pode resolver seus problemas com base nos conselhos de outro, pois cada indivíduo é único e tem necessidades únicas. A protagonista encontra-se num impasse: sente que deve enfrentar o dragão, mas não tem coragem para isso. É mais confortável esperar que os outros resolvam seus próprios problemas. No entanto, com essa atitude, não poderá reclamar mais tarde por não ter tomado as rédeas de sua vida e vivido conforme seu verdadeiro ser. Não seria ela que teria vivido sua vida, mas os outros.
Mirana orienta Alice a se encontrar com Absolem, o qual encontra na forma de crisálida. Alice pergunta a ele: “Você vai morrer?”. A lagarta responde que irá transformar-se. Alice parece compreender com esse encontro que não morrerá na batalha, exceto na forma da Alice falsa para a verdadeira Alice. Parece perceber que seu medo de morrer representa o medo de mudar, de seu eu antigo morrer, e de ter que ocupar-se em um sistema de adaptação à nova vida como Alice transmutada. E isso é muito trabalhoso, mas também tem suas vantagens: faz mais justiça ao seu jeito de ser. Seu destino e seu ser estarão muito mais em harmonia e por isso sentirá muito mais prazer, pois tudo fará mais sentido, terá mais significado.
A fumaça lançada por Absolem parece também ser muito peculiar. Alice sente-se sufocada e confusa quando envolvida por ela.
[...] o si-mesmo não pode ficar circunscrito ao âmbito da consciência do eu, mas se comporta como uma atmosfera que envolve o homem e cujos limites é difícil de ser fixado com certeza, tanto espacial quanto temporalmente (Daí os fenômenos ditos sincrônicos, frequentemente ligados aos arquétipos!) (JUNG, 1990a, p. 158)
É como se a lagarta confundisse Alice com seu jeito peculiar de arranjar os acontecimentos da trama de modo que acabe por cumprir o destino traçado no oráculo. Absolem tece seus fios de modo a envolver a jovem em um casulo de fumaça a cada encontro, o que acaba por conduzi-la ao alvo, à sua essência. Ela pensa estar agindo de acordo com o que quer seu ego, mas fazendo assim está correspondendo às expectativas do Si-mesmo. E o universo (o País das Maravilhas) parece conspirar nesse sentido.
A EXATA MEDIDA DE ALICE – A história traz uma mensagem simbólica de proporcionalidade: a Alice que ora é alta demais, ora é baixa demais para a sua verdadeira altura, a qual é a medida exata da armadura. Afinal, quem é da própria altura? É muito difícil alguém saber identificar-se com a exata medida do seu ser. Geralmente as pessoas se acham muito além (inflação), ou muito aquém (deflação) do que realmente são. Isso porque decidem identificar-se com figuras irreais, além da proporção humana. E isso pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Quando ocorre de forma consciente, está sob o domínio do eu, que passa que é maior ou menor de acordo com a impressão que quer causar, ou de acordo com o que a situação exige. No caso de Alice, quando se depara com a pequena porta, ela precisa apelar às exigências do inconsciente e tornar-se menor, para servir ao que seus conteúdos exigem. Alice ora fica do tamanho certo para passar pela pequena porta – e aí não consegue a chave para destrancá-la, ora fica grande demais para ela, apesar de aí poder obter a chave... Quantas vezes essa situação não ocorre no dia a dia? Pensa-se dispor da chave para abrir as portas das situações, mas sempre ocorre de não se ter a chave certa ou das portas serem muito estreitas... É preciso conciliar o tamanho, a proporcionalidade, com a chave certa. Na verdade, a “chave” está em se saber se uma determinada situação ou problema é grande ou pequeno demais para o indivíduo. Então este poderá agir de acordo com essa realidade, sem ilusões ou decepções. O ego, em princípio, pode ter que se considerar “menor” para poder confrontar o inconsciente, para poder ouvi-lo e assim chegar a um equilíbrio, à medida ideal.

A RAINHA VERMELHA (IRACEBETH) – Seu nome – Iracebeth – pode ser um jogo de palavras com “irascible” (irascível), conforme consta na Wikipedia inglesa.
A desproporção se estende à rainha vermelha, que tem a cabeça muito grande, e isso ela considera uma inferioridade. Por isso recorre ao poder e à expressão: "Cortem as cabeças!". Isso porque está inflacionada na cabeça: ela quer ser sempre "o cabeça", estar no poder, mandar em tudo, ser bajulada e não amada. Daí as outras pessoas também serem desproporcionais (hipócritas) enquanto servem à rainha. A punição da rainha para quem quer ser "o cabeça" de sua própria vida é ter a cabeça cortada. Só ela pode estar no comando, embora seja um mando disfarçado: finge mandar e os outros fingem obedecer cegamente. Ela acredita no amor ao poder.
Mas qual a associação do símbolo de copas com ela? Na verdade, copas (o amor, o sentimento) está subordinado à rainha vermelha, e de uma forma velada. Sua grande cabeça parece também fazer referência ao racionalismo que deixa o sentimento de lado e/ou o subordina. Iracebeth reclama sempre a racionalidade em seu socorro. O trono é seu e não da irmã, já que é a irmã mais velha. É a lógica... A desproporção de sua cabeça acaba por deixá-la muito distante da realidade, daí acabar se decepcionando com todos ao redor, enganando-se com relação às suas verdadeiras intenções. Por isso ela passa a impressão de ser muito ingênua e é passada para trás facilmente.
A rainha vermelha não tem maturidade emocional e por isso é muito ingênua. Ela usa os sentimentos para protegê-la (as cartas de copas e o capanga cego de um olho com um copas de tapa-olho). Mas a rainha-sombra tem algo de positivo a passar para Alice. Afinal, Alice precisa da determinação de sua sombra para vencer seu medo e dar o golpe final na cabeça do dragão.
A coroa está com a Iracebeth e não com Mirana. As duas rainhas podem ser compreendidas como figuras sombrias de Alice: uma negativa, projetada sobre sua mãe e/ou sua futura sogra, e outra positiva. A projeção da própria sombra, que não admite e, por conseguinte, não tem como discordar, sobre a futura sogra, provoca sua subordinação a esta. Alice ainda não sabe que pode dizer “não” – ou se sabe que pode, não tem forças, que pode dirigir sua vida sozinha, apesar dos projetos dos outros a seu respeito. Daí a ênfase do poder – a coroa, recair sobre a Rainha Vermelha, a filha mais velha, e não sobre Mirana, a mais nova. São os outros, em quem recai a coroa e a sombra, que possuem poder sobre sua vida. Para vencer o dragão Jaguadarte, Alice tem que se comportar como a rainha Vermelha e cortar sua cabeça. Ela não sabe matar e não daria conta, mas percebe que deve agir como Iracebeth, que tem domínio sobre as coisas vivas. É desta sombra que Alice vai tirar forças para confrontar a ex-futura sogra e seu filho.
O significado do chapéu é pertinente neste ponto:
De acordo com Jung, o chapéu, uma vez que cobre a cabeça, geralmente assume o significado do que se passa nela: o pensamento. Ele lembra o provérbio alemão: “colocar todas as idéias sob um chapéu”, e menciona que no romance de Meyrink, O Golem, o protagonista experimenta os pensamentos e as experiências de outro homem cujo chapéu colocou por engano. Jung também aponta que, desde que o chapéu é a “coroa” e ocupa o local mais alto de um indivíduo, cobrindo-o, isso se reveste de um significado simbólico especial. (CIRLOT, 1971, p. 140)
Com relação à coroa, Cirlot (1971) a distingue totalmente do chapéu, pois ultrapassa até a altura de um indivíduo, daí a idéia de superioridade, de grandiosidade. Donde também se usa a expressão “coroar” certa atividade, no sentido de vencer, concluir.
Ora, o Chapeleiro Maluco se propõe a fazer chapéus para Iracebeth, que esta usaria ao invés da coroa. Como se isso fosse um exercício para a atividade futura da rainha: ocupar-se de pensamentos comuns e não sobre o poder. Mas ela se recusa a usá-los. Pensamentos comuns não a interessam. Ela quer mandar, dominar os outros. Aos que a frustram chama de idiotas, afinal enxerga apenas o cisco no olho do próximo, não a trave em seu olho.
Os animais são sua mobília viva, um arbusto tem a forma de sua cabeça, coleciona seres vivos e até seres humanos – vide os gêmeos Tweedle-Dee e Tweedle-Dum. Sua intenção não é respeitar os outros, pois ela não se respeita: sabendo-se anormal e de aparência bem desagradável, prefere encobrir o que acha de sua cabeçorra. Seu séquito explora essa fraqueza, reforçando-a. Esse desrespeito se estende a todo o mundo subterrâneo, por isso Mirana se refere aos vários crimes que cometera. Iracebeth prefere ser temida a ser amada, afirmação que fez após sua decepção com seus seguidores, que a bajulavam com sua aparência anormal mentirosa. Estava iludida com eles. Achava que a compreendiam por serem diferentes como ela. Mas não, apenas se aproveitavam do seu poder. Mal sabe ela que tentava impor um ideal a todos: a normalidade da diferença. Aos que se opunham, dava a ordem: “Cortem as cabeças!”, pois haviam demonstrado ter uma cabeça natural e não monstruosa. Se todos que se opusessem não tivessem cabeça, não sobraria ninguém para comparar a si... Então, “Qualquer um com uma cabeça dessas é bem-vindo na minha corte”, diz a Alice, quando esta se encontra anormalmente maior, também inflacionada.

A autoconsciência e o mundo


Há uma certa noção que deriva de uma focalização ou sentimento que às vezes me ocupa e me deixa intrigado. Percebo que estou aqui, à frente da tela do computador, que possuo um corpo, uma família, uma casa... Que posso fazer várias coisas e que tenho consciência de mim mesmo. Ocorre que sei, assim como vários filósofos já refletiram, que se eu não tivesse a minha consciência, nesse ponto de vista particular, meu, deste ponto de onde posso focalizar minha atenção em qualquer coisa, nada que se encontra ao meu redor existiria para mim. Desse modo, seria como se o mundo não existisse, apesar deste provavelmente levar sua existência totalmente à parte da minha possível existência. É intrigante levar essa consciência da existência exclusiva no mundo. Como pude nascer e chegar a ter essa consciência, nessa época específica da humanidade e estar aqui, neste momento, neste ambiente físico? Vejo as coisas ao meu redor, e ninguém mais tem a percepção que eu tenho, a partir deste ponto de referência (meus olhos e sentidos em geral). É um mistério!
O que é este eu que percebe as coisas ao redor? Ora, se eu nasci, cresci e agora tenho essa noção do mundo e de mim mesmo, como eram as coisas antes de mim e como serão depois? As coisas acontecerão sem eu para percebê-las? Se fui um acidente que ocorreu na natureza o qual me deu esse dom de autoconsciência, ocorrerá ele de novo? Terá ele já ocorrido alguma vez antes? Parece incrível, mas não posso imaginar o universo passar despercebido por mim... Ele não seria ou seria totalmente à parte, sem percepção. Por certo, outros podem percebê-lo, do mesmo modo como faço agora, mas de forma descontínua e muito particular, do mesmo jeito que eu.
O que sinto no final é a resposta ao conjunto de todas essas reflexões, mas não reflito para sentir isso que sinto. Essa noção vem na forma de certa percepção peculiar. Percebo esse mistério de ser esse observador (e agente) do mundo ao meu redor. É um sentimento de estranheza, de se ver fazendo parte de um processo que é contínuo (o mundo), mas descontínuo na sua percepção (meu ponto de vista), uma vez que nasci, tomei consciência e morrerei. Tenho conhecimento da história do mundo e das possibilidades de seu desenvolvimento. Mas percebê-lo, tomá-lo como objeto da minha percepção, é algo vivo, decorrente de uma realização imediata, palpável. E é isso que ocorre na forma de um “corte” que inicia no meu nascimento e termina na minha morte. O que está fora disso é “nada” para mim e para o universo não percebido por mim. Outros podem percebê-lo como eu, mas isso não passa de uma suposição da minha parte, uma crença, uma vez que não ocorre comigo, na minha experiência. Não tenho a pretensão de dizer que o que não ocorre comigo não ocorre com os outros, mas com certeza isso é só uma ideia, se comparada com a vivência que tenho a partir do meu ponto de vista.
De novo, o que fica é esse mistério de eu perceber o outro (mundo).
E você, leitor, já passou por esse sentimento intrigante?

Amizade - instrumento do autoconhecimento




Amizade, em princípio, deveria ser inseparável do autoconhecimento, assim como qualquer outro relacionamento que possua certa profundidade. Ser amigo não é apenas confiar e ser leal, mas aceitar o outro incondicionalmente, com suas qualidades e defeitos, embora a aceitação desses defeitos não signifique concordar com eles. Aceitar as inferioridades do outro é não se espantar, não se horrorizar, isso como conseqüência de se saber das possibilidades do próprio comportamento em condições semelhantes ou piores. É ter primeiro a coragem de admitir aspectos na própria personalidade que não correspondem à expectativa geral – daí a possível capacidade de se aceitar o lado negro do outro.
Deixar o outro ser ele mesmo enquanto se está ali, perto dele, naquele instante. Saber que não adianta lutar, esbravejar, matar, nem degolar, que a pessoa continuará sendo o que sempre foi. Mudar é impossível quando é essa a intenção. Como se pode mudar quando a própria pessoa é o agente da mudança? No entanto, é quando há uma rendição ao que se é, tal qual se apresentam as partes “boas” ou “más” da personalidade, quando não se resiste ao mal, aí é que, como uma dádiva, a mudança ocorre. Isso ocorre, porém, devido à compreensão alcançada; também, porque a mudança sempre parte do ponto que se quer mudar e, se este não é aceito, nenhuma transformação ocorre. Parece que não existe alguém totalmente perfeito ou isento de erros, e se existe, provavelmente não é humano, de acordo com a máxima bastante conhecida: “errar é humano”. Tudo indica que só se pode ser bom até certo limite, além do qual tem que haver algum reconhecimento do “defeito”, da “mancha”. Apenas existe a opção pelo melhor se houver a percepção de que se pode escolher o pior, que está tão disponível quanto aquele. Portanto, para haver a paz deve haver a aceitação da diferença; deve-se ser inteiro e não unilateral.
Desta maneira, Cristo está psicologicamente correto quando diz: “a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil.” (Mt 5, 39-41). Figuradamente, é como se ele dissesse: “Se no que você acha que está certo o outro lhe bate (face direita), deixa-o bater então no que você tem certeza que está errado (face esquerda)”. Essa atitude corresponde simbolicamente a se colocar numa cruz, pendurar-se nos lados opostos (certo e errado, direita e esquerda), cada um dos quais puxa para o seu lado. É costume se interpretar os ensinamentos cristãos ao nível exterior, com relação aos outros lá fora, e não com relação aos outros que estão dentro da personalidade, o que é igualmente válido e talvez ainda mais significativo. Isso porque a aceitação dos aspectos interiores antes rejeitados invariavelmente implica na aceitação das outras pessoas que também portam esses aspectos.
Dificilmente uma personalidade será una. Ilude-se aquele que, apesar de ouvir as variadas vozes que clamam dentro de si, e que muitas vezes contradizem os próprios desejos e até necessidades, teima em achar que é apenas “João” ou “Maria”. Ter um nome traz a ilusão de ser alguém e não várias pessoas (uma multidão de desejos, pensamentos e sentimentos contraditórios). Infelizmente os in-divíduos (personalidades não divididas) são raríssimos. A humanidade está longe disso. Mas a amizade pode ajudar e muito nessa realização.
A amizade é, ou deveria ser, o espelhamento do outro. Alguém desesperado procura um amigo que, ao invés de desviá-lo daquilo que tanto o oprime, o espelha, procura compreender a sua condição, o estado em que se encontra, o(s) sentimento(s) que tanto o perturba(m), e expressar isso. Faz parte da educação ocidental, desde o berço, ensinar a rejeitar as emoções “negativas”: raiva, medo, rancor, mágoa, tristeza, decepção, etc., e a incentivar as positivas. Mas por quê? Parece que a principal razão é que as emoções “negativas” defendem o indivíduo, enquanto as “positivas” o integram aos outros e à sociedade. Porém, toda emoção negativa sempre tem um fundamento. Ninguém sente medo à toa, nem mágoa e nem decepção. Mas todos insistem em rejeitá-las. Se alguém faz “tempestade em copo d´água”, provavelmente isso ocorre não porque seja impulsivo, mas porque tem uma compreensão equivocada da situação. A emoção é a conseqüência desse ponto de vista parcial e limitado.
Miguel (nome fictício) rói suas unhas desde os 7 anos. Todo aquele que tem a compulsão de roer unhas sabe que o faz involuntariamente. Às vezes gostaria até de parar, mas “é o outro em mim que rói as unhas”, diz ele. Afinal, o que há nas unhas para Miguel querer comê-las? “As unhas protegem partes vulneráveis do nosso corpo (as pontas dos dedos) e acumulam sujeiras” – responde. Miguel também diz que um peito é menor que o outro, ao responder sobre qual parte do seu corpo não gosta. “Algo que o protege partes vulneráveis e que acumula sujeira – existe algo assim em sua vida?” Várias lembranças lhe ocorrem de como, quando criança, era obrigado a ajudar o pai na roça contra a sua vontade enquanto os irmãos não o faziam. “Ou eu ia ou levava uma surra.” Falou da mudança para a cidade, das dificuldades de adaptação, dos colegas que lhe batiam e de como aprendeu a suportá-los. Enfim, o que ele queria dizer é que a raiva era como suas unhas. A raiva protege suas partes vulneráveis (o ego) dos agressores e exige sua expressão. Aliás, o que vários animais fazem quando se sentem ameaçados é justamente “mostrar as garras”. Porém, ele quer “encurtar” a raiva ou, se fosse possível, extingui-la. “Para onde apontamos quando nos referimos a nós mesmos?” Imediatamente ele entendeu que o seu peito menor tinha algo a ver com a proteção que fazia questão de não ter ou que fosse a menor possível. Não é à toa que um indivíduo raivoso estufa o peito num ímpeto de exigir respeito. Coincidentemente, Miguel só pensara em parar de roer unhas quando começou a expressar seu rancor ao pai. Com o esforço da vontade, ele poderia até deixar o hábito de lado, mas com certeza ele ia ter que arrumar um outro jeito de roer sua raiva se não percebesse que precisava expressá-la de algum jeito. Hoje Miguel raramente rói unhas. É preciso que aceite outros aspectos ainda desconhecidos das suas garras.
Frases que expressam a compreensão do ouvinte em relação ao interlocutor são muito empáticas. O amigo ouve o outro colocando-se no seu lugar, tentando compreender como é perceber sua vida pelos seus sentimentos, e expressa eventualmente o quanto o está compreendendo por palavras que descrevem o seu estado. Esse feedback é útil para assegurar ao ouvinte de que realmente está acompanhando o outro e não está se desviando para pontos de vista pessoais.
Em determinadas situações ou momentos todos têm necessidade de falar. O falar da vida e de si mesmo transforma o indivíduo em observador da própria situação e distancia-o dela. Suspende-se a identificação com a situação perturbadora para conhecê-la a partir de um ponto de vista de fora da situação. Pois ninguém pode falar de si ou da situação porque passa sem observar a si e aos próprios comportamentos. De alguma forma o sujeito se torna mais real e objetivo, pois não se experimenta apenas subjetivamente. Fala-se de algo para alguém. Os pensamentos, sentimentos e fantasias que pairam por sobre a cabeça finalmente alcançam o seu objetivo: que o indivíduo lhes dê importância e atenção, que sejam compreendidos, e é talvez por isso que deixam de incomodar. Se há capacidade de relatar a alguém coisas tão íntimas e passíveis de crítica, é porque se está dando valor a essas pequenas coisas. Consequentemente, o sujeito está sendo ele mesmo para o outro, se aceitando de forma completa, e não resistindo à sua natureza. E aí, quando se entrega a tudo isso, e deixa de se molestar para ser o que não é, o indivíduo tem um sentimento de liberdade, de leveza e de unidade. É o efeito do “desabafo” e da autoexpressão.
“Abafar” quer dizer primordialmente cobrir, seja para conservar o calor ou impedir a evaporação. Desabafar é descobrir, deixar escapar e sair aquilo que estava impedido ou bloqueado. Havia uma espécie de fornalha ou caldeira interior e se decidiu aliviar a carga, a pressão incômoda.
Há apenas mais dois pontos a enfatizar. A importância de não criticar e não aconselhar. Se alguém se incomoda com os sentimentos “negativos”, isso é sinal, normalmente, de que não está se importando de alguma forma com o auxílio que recebe da natureza para se proteger de ameaças externas. E criticar esses sentimentos não leva a lugar algum. Assim que a nuvem de confusão passar pela disponibilidade que oferece o amigo para ouvir e compreender, ela se dissipará e o caminho a tomar estará bem mais claro, ou pelo menos o que não se deverá fazer de imediato. Essa é a lealdade e a confiança para com o amigo. Quem passa por dificuldades não precisa de orientações, sejam na forma de crítica ou de conselho. As pessoas se sentem devidamente orientadas quando se sentem em paz com a vida, ao lado de amigos que percebem que cada um é diferente e carrega suas próprias fraquezas. É muito confortador quando se tem valor justamente por ser diferente e único.
É muito bom ter amigos e expandir o círculo de amizades. Com certeza não faz parte da amizade apenas o que foi abordado aqui. O amigo como o descrito atrás é essencialmente um companheiro de vida que compartilha não o mesmo sangue, mas o próprio ser, exatamente do modo como é. E quanto mais amigos possuir, maior o sentimento de expansão, pois a sensação é de que o eu do indivíduo não estará apenas dentro de si, mas também nos amigos. E não sentirá mais a divisão tão intensa que antes (não) percebia. Fará parte do mistério de ser um in-divíduo, unidade interior e exterior.