Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

João-pé-de-feijão: vencendo os gigantes da vida

     Apresento a seguir um resumo do conto de fadas “João e o pé de feijão”, de Joseph Jacobs, um australiano que viveu na Inglaterra, onde estudou o folclore local e publicou vários contos que coletou, entre eles o conhecido “Os três porquinhos” (Wikipedia). A versão completa que traduzi livremente do original se encontra aqui. A ideia de fazer uma análise do conto original deriva de ter assistido recentemente o filme “Jack, o caçador de gigantes”, no cinema, do qual algumas imagens foram usadas para ilustrar este texto (® Warner Bros Ent.). Sempre que uma estória como essa surge, podemos perguntar sobre o seu significado. E foi justamente o que me ocorreu, pois o conto original, ao contrário do filme, dá margem a que o pensemos como um equívoco moral, já que o herói não faz nada mais que roubar e assassinar um ogro, apesar deste se alimentar de meninos, mas não o faz para vingá-los ou para sustar o comportamento do ogro. A estória me parece fazer um breve apanhado da trajetória de desenvolvimento de certos adolescentes ou crianças, e é muito instrutiva a esse respeito. Após a apresentação desse resumo, faço uma breve análise psicológica do conto, onde pretendo revelar seu sentido que, à primeira vista, não parece muito ético. 
Cartaz do filme "Jack - o caçador de gigantes"
ERA UMA VEZ uma pobre viúva que tinha um único filho chamado João. O único bem que possuíam era uma vaca leiteira, a qual decidem vender por não dar mais leite. João a leva ao mercado quando encontra um velho de aparência engraçada que, estranhamente, sabe o seu nome. O homem propõe um enigma, perguntando quantos grãos são cinco. João responde, afiado como uma agulha, que dois em cada mão e um na boca. O estranho diz que a resposta está certa e lhe dá os feijões em troca da vaca, dizendo que, se plantados à noite, no dia seguinte eles cresceriam até o céu. A mãe se decepciona com a ingenuidade do filho, bate nele, joga os feijões pela janela e o deixa sem cear.  
No dia seguinte, João se espanta com o pé de feijão que crescera como uma escada espiral até o céu. Ele o escala e, uma vez no céu, segue uma estrada que dá numa grande casa. Uma giganta, que João chama de “mãe”, prepara para ele um café da manhã, a seu pedido, mas alerta-o que seu marido é um ogro e que ele tem que sair logo de lá, se não quiser virar sua refeição. Corajosamente, João replica que também morrerá de fome, se não conseguir comer algo. Mal João começa a comer e o gigante chega com muito estrondo. A grande mulher esconde João no forno. O marido alega sentir cheiro de um inglês. A mulher replica que o cheiro provavelmente pertence aos restos do menino que ele comera no dia anterior. O ogro vai tomar banho e a mulher diz para João esperar até que ele durma após o café. O gigante toma o café – três bezerros grelhados – e vai contar o conteúdo de um par de sacos de ouro, após o que adormece, roncando até tremer a casa. João passa por ele, apanha um dos sacos de ouro e desce pelo pé de feijão.
Mãe e filho vivem do conteúdo do saco até este acabar. João sobe de novo pelo pé de feijão até chegar à grande casa. João pede de novo para comer algo, mas desta vez a mulher não fica tão receptiva quanto antes, pois suspeita que ele roubara seu marido. O jovem alega saber algo a respeito, mas diz que só falará após comer alguma coisa. A mulher, curiosa, dá-lhe de comer, quando o gigante chega novamente, com estrondo. Tudo ocorre como antes. O gigante pede que a esposa traga sua galinha de ovos de ouro, ordena que ela bote um ovo, o que ocorre, e ele adormece. João sai do forno, pega a galinha, que cacareja na saída, o ogro acorda e pergunta à mulher onde está sua galinha, mas João rapidamente desce pelo pé de feijão e demonstra o que a galinha faz à mãe. 
Mas João não fica satisfeito e resolve tentar a sorte de novo lá em cima. Vai direto à grande casa, mas não fala com a mulher, que havia saído para pegar água, e entra em uma panela. O gigante chega e alega sentir cheiro de sangue inglês. A esposa deduz e fala ao marido que o ladrãozinho deve ter entrado no forno e vai procurar lá. Frustrada, diz que seu velho deve ter sentido o cheiro dos restos do rapaz que havia devorado na noite passada. O ogro procura na despensa, mas não o acha. Após o café, a mulher traz a harpa dourada, ele ordena que ela cante, o que ela faz maravilhosamente, e ele adormece. João sai da panela, pego a harpa e, à porta, a harpa chama “Mestre! Mestre!”. O gigante acorda e vê João sair com a harpa. Esquivando-se, João consegue chegar ao pé de feijão e desce. O ogro hesita, mas quando a harpa o chama novamente, cria coragem e começa a descer. João ainda não havia descido da árvore, quando pede um machado à mãe. Ele golpeia-a e a parte em dois. O gigante cai, quebra sua coroa e o pé de feijão cai logo depois. O rapaz mostra à mãe a harpa e posteriormente tornam-se muito ricos. Ele casa-se com uma grande princesa e são felizes para sempre.
     As condições econômicas da família da mãe e do filho são muito precárias. O que a mãe decide fazer – vender a vaca – implica apenas em uma solução temporária. Provavelmente a vaca também não tinha o que comer. Vendê-la é uma espécie de rendição à situação de extrema penúria em que se encontram. Não há esperança. Essa é a miséria simbólica em que se encontra o herói. O que a mãe representa para João é a falta de esperança em construir algo mais, em ir além, em se tornar autônomo. Falta a ele a figura do pai, a mãe parece supri-la apenas em parte, e mesmo assim apenas no aspecto negativo. João precisa de uma ponte para o céu:
Nas condições pré-patriarcais, os homens e anciãos representam o ‘céu’ e transmitem a herança cultural coletiva da sua época e geração. ‘Os pais’ são representantes da lei e da ordem, desde os tabus primitivos até a jurisprudência moderna; eles transmitem os bens mais elevados da civilização e da cultura, ao passo que as mães cuidam dos valores mais elevados, isto é, mais profundos, da natureza e da vida. (NEUMANN, 1990, p. 136-137)
O pé de feijão
     Em condições como esta, normalmente a psique produz símbolos ligados à salvação e ao livramento. A figura do Velho costuma aparecer nos contos e na mitologia sempre quando o herói se encontra em situação desesperadora e sem saída, e apresenta geralmente alguma reflexão ou ideia que pode levá-lo a resolvê-la. Muitas vezes faz perguntas para levar à autorreflexão e favorecer a reunião de forças morais. Ele sabe os caminhos que levam à meta e os mostra ao herói. É um símbolo do Si-mesmo, o núcleo da individualidade, daí ele saber o nome do jovem (JUNG, 2000, p. 214, 216-217). E é isso que o velho de aparência engraçada faz: ele testa João, estimula sua reflexão, que mais tarde será de grande valia na atitude que tomará com o gigante, e dá a ele os feijões, que o levarão a desenvolver atributos que o levarão a uma personalidade mais completa, e que serão muito úteis como adulto.
     O feijão tem papel de magia amorosa na Índia em razão da semelhança com o testículo. Além disso, era usado em um rito no Japão para proteção e exorcismo de maus demônios do lar, onde eram espalhados. Na origem, esse rito tinha por finalidade assegurar a fecundação do arroz e a prosperidade da casa (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1990, p. 419). Simbolicamente, pois, o feijão, também no presente conto, tem mesmo uma ligação com a prosperidade e o exorcismo de maus demônios, pois é pelo pé de feijão que o ogro morre, e a fecundidade – o jovem se casa no final.
     Quanto ao enigma proposto pelo velho, o número dois está associado a ambas as mãos e o um à boca, de acordo com a resposta do jovem. Em conexão ao que o feijão representa, cada mão é dupla em relação aos objetos: elas fazem e desfazem, escalam e descem, largam e pegam. A boca, em geral, apenas ingere objetos comestíveis, um significado unívoco de aquisição, de apropriação. Essa atitude é pertinente ao gigante, que só sabe acumular, se inflar, se engrandecer cada vez mais, tornar-se cada vez mais poderoso e rico. Maior valor deve ser dado às mãos, com mais feijões: as atitudes na vida valem mais do que o simples falar ou adquirir. Jung (1991b) diz, no capítulo sobre suas atividades psiquiátricas, em suas memórias, que o “deslocamento para o conceitual tira à experiência sua substância para atribuí-la a um simples nome que, a partir desse instante, é posto em lugar da realidade.” Aquele que se prende ao conceito, abre mão de vivenciar a realidade correspondente. Portanto, a resposta de João ao velho era como que uma preparação para o processo proposto pelo Si-mesmo: teria que saber o tempo certo de fazer e desfazer (dois feijões nas mãos), e unívoco na fala ou ingestão (boca), a fim de prosperar (feijão). A resposta afiada de João indica que ele está preparado intelectualmente para a aventura, para conseguir iniciar experiências em outras funções de sua consciência. 
     Por incrível que pareça, não é por João que os feijões são plantados, mas por sua própria mãe que os joga pela janela para o jardim. Justamente ela, que duvida, que nega a fantasia, a crença, a esperança em algo tão mágico, tão impossível. A mãe e João formam um par de opostos: a dúvida e a fé, a astúcia e a ingenuidade, os frutos do trabalho e o presente da graça. Porém, o pontapé inicial é dado justamente pelo lado oposto à atitude ingênua do jovem. Este tem fé, mas tem que ser obrigado a esquecer seu projeto, pois é assim que ocorre o processo de crescimento, de amadurecimento. Não se pode a todo momento querer verificar em que estágio se encontra o broto de uma semente, sob o risco de estancar o processo. E é esse o papel que a mãe tem sobre a germinação do processo que o levará à resolução de seu problema. Sonhador, João pretende que seu negócio com o velho tenha sido uma ótima transação, mas a mãe não acredita nisso. E talvez, se não fosse a mãe, o filho não tivesse plantado as sementes, com medo de que sua fantasia não se realizasse e que sua mãe, afinal, estivesse certa a respeito. No entanto, o jovem precisa ousar desafiar essa gigantesca monotonia, esse pensar monótono que não dá lugar aos sonhos que levam além da condição atual, da situação aprendida e condicionada. Nesse sentido, a mãe de João tem muito a ver com os gigantes.
Um dos gigantes do filme
     Hillman (1996, p. 298) faz referência aos gigantes nos contos em geral. Diz que são conhecidos por serem por demais concretos, literalistas, de raciocínio lento, míopes, sentirem fome constante, e que isso talvez se deva a eles serem vazios. Os gigantes pensam apenas em coisas únicas, reduzindo tudo a uma coisa só para não ter de sair de seu lugar acolhedor, de seu estupor.
Não é de espantar que, quando crianças, tivéssemos medo de gigante e adorássemos as histórias em que o gigante acabava morto por alguém como Davi ou João-Pé-de-Feijão, ou vencido pela esperteza de alguém como Ulisses. O gigante, com sua burrice adulta, ameaça a imaginação da criança, as conexões ecológicas da criança com um mundo de maravilhas. A burrice é o gigante que não vê as coisas pequenas. Afinal de contas, é um feijão que salva o João-Pé-de-Feijão, e uma pedrinha que salva Davi de Golias. O gigante da psique é outro nome para a caverna da ignorância de Platão, e é numa caverna que Ulisses encontra o Ciclope, o gigante de um olho só, que interpreta ao pé da letra as falas capciosas de Ulisses e, assim, é logrado. (HILLMAN, 1996, p. 298). 
     Aliás, a saída para Ulisses se safar de Polifemo é se apresentar como “Ninguém”. Ele estava fazendo o ciclope se embebedar de vinho para poder escapar.
Polifemo e Ulisses em "A Odisséia"
Quando o vinho subiu aos miolos do Ciclope, eu lhe dirigi palavras gentis: “Ciclope, perguntaste o meu glorioso nome; eu vou dizer-to; dá-me, porém, o presente, como prometeste. Meu nome é Ninguém. Chamam-me Ninguém minha mãe, meu pai e todos os meus companheiros”. Assim falei e ele replicou-me prontamente, sem piedade na alma: “Será Ninguém o último que comerei depois de seus camaradas; irão primeiro os outros, será esse o presente de hospitalidade.” (HOMERO, 2010, p. 146)

Pouco depois, quando o ciclope adormeceu e teve seu único olho penetrado pelo toro de oliveira incandescente, ele bradou chamando os ciclopes das cavernas vizinhas.
“Que te aflige tanto, ó Polifemo, para bradares assim pela noite divina e nos tirares o sono? Estará algum mortal, mau grado teu, tangendo embora o teu rebanho? Ou alguém te está matando por dolo ou pela força?”. Do fundo da caverna, respondeu-lhes o robusto Polifemo: “Ninguém, amigos, me está matando por dolo e não pela força”. Eles, em resposta, pronunciaram aladas palavras: “Se ninguém te está maltratando e estás só, não há como fugires à moléstia enviada pelo grande Zeus; reza, pois, a sua alteza Posidão nosso pai”. (HOMERO, 2010, p. 147)
     Chamando-se “Ninguém” Ulisses confessou que era ninguém perante aquela presença aterrorizante que devorara seus amigos como tira-gosto. Ele não se inflou, pois sabia qual era seu lugar na situação, e por isso é conhecido miticamente por ser o herói grego mais inteligente e preferido de Atena. Além disso, fica claro nas passagens apresentadas o quanto os gigantes são mentalmente míopes por natureza, como atestou Hillman acima.
     O livro apócrifo de Enoque narra que os anjos tiveram relação com as mulheres dos homens e geraram uma raça de gigantes que devastou a terra. Trata-se, segundo Von Franz (1992b, p. 125), de uma invasão precipitada de conteúdos do inconsciente coletivo na consciência humana. Os gigantes retratam a inflação ocorrida, o que foi catastrófico para a humanidade. A queda dos anjos e seu acasalamento amplia e muito o significado do homem, ocasionando uma inflação da consciência cultural da época. Segundo a autora, trata-se de um conhecimento que evoluiu rápido demais, como ocorre no momento atual. Mas na presente estória, João corta o pé de feijão assim que consegue o seu intento, e intercepta a invasão do conteúdo do inconsciente coletivo, representado pelo gigante, em sua consciência terrena, o que seria catastrófico para sua saúde mental. 
     O roubo do fogo dos deuses por Prometeu também é uma comparação pertinente, desde que ocorre um intercâmbio da terra com o céu, na forma de roubo. O titã leva o fogo do Olimpo (céu) aos homens na terra e ensina a eles várias artes e artifícios que atenuariam sua sofrida vida. Prometeu é punido e a raça humana é quase extinta em um dilúvio. Aqui, a iniciativa parte do céu, dos próprios deuses, que de um lado querem ajudar os homens (Prometeu), e por outro, não (Zeus). Na Bíblia ocorre essa mesma ambiguidade, uma vez que Deus coloca a árvore do conhecimento do bem e do mal no meio do paraíso, mas proíbe ao homem de comer de seu fruto. No conto de fadas o jovem não peca, e procede corretamente em todas as fases da trama.
Jack e o pé de feijão
     O fato de João subir pelo pé de feijão e chegar ao céu lembra o episódio bíblico da construção da Torre de Babel pelos homens (Gênesis: 11). Havia um só povo, com uma só língua, que também pretendia chegar ao céu. Deus percebeu que não haveria restrições a tudo o que esse povo quisesse fazer. Então confundiu a língua de todos, o que fez com que se separassem. A estória de João é diferente, pois o incentivo para que o jovem vá até o céu parte do Velho Sábio, do Si-mesmo. A intensão é o amadurecimento, uma tarefa de vida construtiva, e não a inflação, uma atitude desequilibrada e destrutiva psiquicamente.
     Edinger (1992, p. 350) faz referência à escada de Jacó, colocada na terra, cuja parte superior tocava o céu, na qual os anjos de Deus subiam e desciam (Gênesis 28:12). Segundo o autor, essa é uma representação do eixo ego–Si-mesmo, onde a descida e a subida dos anjos correspondem aos processos de sublimatio (sublimação) e coagulatio (coagulação). Psicologicamente, a primeira caracteriza o processo de elevação de experiências concretas e pessoais a um nível de verdade abstrata ou universal. A segunda revela o oposto: a concretização ou realização pessoal de uma imagem arquetípica. Essa experiência constitui uma solução definitiva para uma “crise de identidade”. O caso de João não salienta tal crise, pois sua identidade, enquanto adolescente, não parece estabelecida. O fato de haver um gigante em sua vida denuncia uma inflação – uma condição de irresponsabilidade e insaciável voracidade, no mínimo, uma dependência materna e carência de aspectos do pai. A tarefa de João consiste em manter a integridade da ligação com o inconsciente sem que se identifique com seus conteúdos ou se alheie deles. 
     A proposta primária do Si-mesmo é que João mate o gigante interior, expressão da subordinação irrestrita de seu ego aos arquétipos paterno e materno. Um sonho descrito por Von Franz (1992b, p. 126) ajuda a esclarecer ainda mais o presente conto com relação ao sentido do casal de gigantes. O mundo havia sido destruído e o sonhador passeava por Nova York com sua mulher. Bolas de fogo se moviam do céu para a Terra: eram OVNIS que traziam uma raça de gigantes do espaço, causa do apocalipse. Dois deles apanhavam um punhado de homens e os comiam. Nos primórdios, a Terra havia sido organizada por eles e agora eles vinham colher os seus frutos. O sonhador foi salvo porque tinha pressão alta. Seu guia o conduzia a uma prova e, caso passasse, se tornaria um “salvador de almas”, como ele. De repente, viu um imenso trono de ouro onde se sentavam o rei e a rainha dos gigantes. Eram as inteligências por trás da destruição. Sua prova consistia na subida muito difícil de uma escada em direção ao casal, o que tinha que executar passar para salvar a humanidade. Acordou banhado de suor. 
O gigante sente cheiro de um inglês
     A autora interpreta o sonho como uma festa de casamento sagrado, a conjunção dos opostos rei e rainha, símbolo da cura de uma profunda dissociação psíquica do sonhador. No conto, o ogro, que deve ser rei, pois usa coroa, desce à terra e morre. A estória, portanto, não trata do casamento sagrado, mas do restabelecimento ou fortalecimento do eixo ego–Si-mesmo. Isso se expressa no esforço de João em conciliar a consciência e o inconsciente nas suas idas e vindas entre o céu e a terra. Ele consegue, com isso, trazer à realidade, ao plano terreno, valorosos itens que roubara do inconsciente. A queda do gigante reflete o "cair na realidade", a "queda das nuvens" de sua inflação - pois João não vivia a própria vida, mas a da mãe, através de sua dependência total, em que esta fazia tudo. Ele vivia no reino da fantasia de que sua mãe podia suprir tudo o que precisasse, pois seio já o fizera por muito tempo. Essa condição começa a mudar com as sanções que a mãe impõe. Sair dessa fantasia envolvia ele atuar ativamente dentro dela, como fez ao visitar o gigante por três vezes, e não fugir de seu conteúdo.
Para o inconsciente, a conquista da consciência é sentida como falta, roubo, pecado. 
cada passo em direção a uma consciência mais ampla é uma espécie de culpa prometeica: mediante o conhecimento rouba-se, por assim dizer, o fogo dos deuses, isto é, o patrimônio dos poderes inconscientes é arrancado do contexto natural e subordinado à arbitrariedade da consciência. O homem que usurpou o novo conhecimento sofre uma transformação ou alargamento da consciência, mediante o que esta perde sua semelhança com a dos demais. Desse modo, eleva-se acima do nível humano de sua época ("sereis semelhantes a Deus") [...] (JUNG, 1991d, §243)
     Esse alargamento da consciência, para o herói, se liga ao casal de gigantes. João, entretanto, se relaciona apenas com a grande mulher, a quem chama de “mãe”. Isso ocorre porque ele vivenciara mais plenamente uma mãe pessoal, ao contrário do pai. De fato, ela parece ter qualidades maternas suficientes para alimentar, mas não para livrar meninos do apetite voraz do marido. Ela é totalmente submissa a ele e não ousa afrontá-lo, apesar de, na primeira e na segunda vez que abriga João, não parecer tão fiel. Mas o local no céu parece totalmente pertencente ao ogro. Edinger (1992, p. 186) escreve que
Quando o pai pessoal está ausente e, em particular quando esse pai é completamente desconhecido, tal como pode ocorrer com um filho ilegítimo, não há camada de experiência pessoal para mediar entre o ego e a imagem numinosa do pai arquetípico. Fica uma lacuna na psique, através da qual emergem os poderosos conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo. Essa condição constitui um sério perigo. Ela ameaça inundar o ego com as forças dinâmicas do inconsciente, provocando desorientação e perda de contato com a realidade externa. Se, todavia, o ego puder sobreviver a esse perigo, essa “lacuna da psique” torna-se uma janela que fornece percepções a respeito das profundezas do ser. (EDINGER, 1992, p. 186)
     Parece existir mesmo essa lacuna na psique de João, denunciada pelo tratamento que a mãe dirige a ele e pela imaturidade em não perceber como a mãe iria reagir frente à troca da vaca por pretensos feijões mágicos. O fato de faltar um pai também parece problemático para ele. Essa carência é suprida ao longo do texto através dos benefícios conseguidos com o gigante – a possibilidade ou abertura ao desenvolvimento de outras funções psíquicas. 
     Estas são classificadas em quatro. Em relação aos objetos, as funções da consciência fazem o seguinte:

Sensação
Assegura que algo existe; abrange as impressões dos cinco sentidos e as corporais internas.
Pensamento
Diz do que se trata; fornece as ideias a respeito do que se apresenta, percebendo-o como um julgamento racional.
Sentimento
Fornece o seu valor; provê os julgamentos de valor (agradável/desagradável, bom/mau, etc.) a partir dos sentimentos despertados por algo.
Intuição
Coloca a par de suas possibilidades, isto é, faz conexões de maneira inconsciente entre o que é objeto de percepção consciente e subliminar e as apresenta de forma pronta, como solução ou caminho que se pode tomar.
Quadro 1 - Atribuição das funções da consciência de acordo com Jung (1991b)

     Entretanto, elas se auxiliam ou se opõem, conforme se configurem, respectivamente, lateral ou frontalmente, de acordo com o seguinte esquema:

Figura 1 - Disposição das funções da consciência segundo o esquema de oposição
Fonte: Sharp (1990, p. 14)

     O tal gigante constituiu para João, portanto, uma “janela” que forneceu percepções profundas de si mesmo, e que o autor acima referiu – as funções da consciência ainda por aprimorar:
A harpa dourada
      - a harpa dourada, símbolo da função sentimento, uma vez que suscita os sentimentos através da música;
     - a galinha dos ovos de ouro, isto é, a intuição, enquanto função de captação do que é possível fazer a partir das impressões do momento; ora, a galinha oferece infinitas possibilidades a partir da produção dos ovos; o ovo “contém o germe a partir do qual se desenvolverá a manifestação”; “é uma realidade primordial, que contém em germe a multiplicidade dos seres” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1990, p. 672); e 
     - o saco de ouro – na interpretação mitológica do tarô, o naipe de ouro representa a energia dirigida à realização material, a ambição de concretizar e criar materialmente, com base nos sentidos (SHARMAN-BURKE e GREENE, 1988, p. 187-188); daí sua ligação com a função sensação. 
     O fato de João responder ao enigma do velho “afiado como uma agulha” indica que sua função mais desenvolvida ou superior é o pensamento. Isso aliado ao fato de João nem desconfiar de como a mãe reagiria ao saber da troca da vaca pelos feijões, o que denuncia sua ingenuidade em sentimento, o quanto não dá ouvidos ao que sente e desvaloriza sua função afetiva. Se o fizesse, consideraria o receio que sente da mãe, o que é devido por já conhecê-la. Por isso a harpa é o último item a ser levado para a terra, e também o mais difícil de tirar do gigante. A função sensação (saco de ouro) é a que menos oferece resistência do inconsciente; a função intuição (galinha) já tem uma ligação mais forte com o inconsciente, como terceira função a ser desenvolvida pelo jovem, por isso ela “cacareja” pedindo ajuda ao ogro; já o sentimento (harpa), função inferior de João, é a maior conexão arquetípica com o inconsciente, e por isso ela chama o grande ogro de “mestre”. 
Um ovo de ouro: as possibilidades abertas pela intuição
     Curiosamente, na proporção em que o jovem se abre mais e mais aos sussurros das funções menos desenvolvidas, ele fica mais perspicaz em lidar com as situações que se apresentam. Na medida em que sobe ao céu (inconsciente coletivo) e desce à terra (consciência), o herói vai aos poucos ativando a função transcendente (JUNG, 1991a, §131). Quando leva o saco de ouro e sobe pela segunda vez ele enfatiza mais ainda o fato de ter que satisfazer sua fome à giganta, uma sensação. Na terceira vez que sobe, após ter levado a galinha à terra, ele percebe intuitivamente que o melhor lugar para se esconder é na panela de cobre, e só escapa de ser devorado por isso. Nesse ponto ele está mais conectado aos conteúdos do inconsciente, e por isso a “sorte” o persegue e o universo conspira a seu favor. Existe uma fluidez na conexão de sua consciência com o inconsciente, representada pelo estabelecimento da função transcendente. Os obstáculos da vida não deixam de existir, mas são encarados e transpostos com muito mais facilidade, pois não existe mais a antiga limitação de se prender a um só comportamento, a um só ponto de vista.
     João devia se orgulhar de ser afiado em suas ideias. A possibilidade de desenvolver outras funções muito importantes, de grande valor – daí serem douradas – encontravam-se presas, reféns de um ogro gigante. A este o herói fez cair, quebrar a coroa, isto é, o reinado do ogro sobre sua consciência, e morrer. A ameaça de ser devorado, que a mãe giganta e seu velho exerciam, era o medo de aventurar-se, de conquistar novos horizontes, e abandonar o conforto do já conhecido, da adaptação condicionada às situações de sua vida. Para que ter outras atitudes, outros pontos de vista em relação às mesmas coisas? Para que crescer, morrer como criança e tornar-se adulto? Pode-se dizer que João projetava o casal de gigantes sobre a mãe, e que não mudava seu relacionamento com ela pelo medo de ser simbolicamente devorado. Com a morte da inflação infantil e a percepção de que podia contar com outros pontos de vista muito mais amplos, João alcançou maior maturidade. Só então ele pôde ter uma vida próspera e se casar.

(Leia mais a respeito: "Como integrar o seu dragão")

REFERÊNCIAS

* As referências não constantes aqui encontram-se na página das Referências do blog. Clique aqui para acessá-la.

JACOBS, Joseph. English fairy tales. Portable Document File. Hazleton, PA, 2013. Acesso em 4 jul. 13.

A lição de "Guerra mundial Z"

     Um vírus, semelhante ao da raiva, se espalha pelo mundo inteiro. As pessoas infectadas morrem e se transformam em zumbis, sensíveis a qualquer ruído, e loucas para morder e infectar outras pessoas.
     Esse filme impressiona em seus efeitos especiais. Vemos milhares de zumbis se amontoando para vencer obstáculos, como se fossem água jorrando. Talvez por esse motivo, o filme deixa uma impressão de como é frágil a condição humana. Talvez a humanidade nunca seja ameaçada por uma “praga zumbi”, mas a forma como o homem interfere no equilíbrio da natureza pode produzir ameaças talvez tão mortais quanto ela. Recomendo que assistam primeiro ao filme, para que não se deparem com a explanação do final deste, o que poderia ser frustrante para alguns.
     Von Franz (1992), em seu livro “Reflexos da alma”, que inclusive dá uma base histórica para a projeção – fenômeno em que as pessoas transferem para outras conteúdos de seu próprio inconsciente, tratando-as de acordo com estes – explana sobre a temática dos demônios e monstros que povoam mitos e outros contos da humanidade. Certos complexos autônomos do inconsciente podem conseguir força suficiente para aplacar o ego e possuir as pessoas. O “possuído” fica incapaz de ajudar a si próprio, pois os complexos desintegram a personalidade dirigindo-a a ações e pensamentos em torno de um único tema.
Essa unilateralidade particular do complexo autônomo aparece claramente representada no folclore e nos mitos de muitos povos, visto que os demônios têm quase sempre uma forma defeituosa ou parcialmente humana: os olhos ou o rosto no lugar errado (na barriga, nos órgãos genitais) ou em quantidade “errada” (Polifemo, que só tinha um olho, ou os seres maus de um olho ou três olhos nos contos dos irmãos Grimm). (VON FRANZ, 1992, p. 115)
Então, ela conta um conto a título de ilustração.
Certo dia, dois irmãos caçando na floresta dão de cara com um grupo de pessoas festejando e bebendo. O irmão mais velho se sentiu atraído a participar, enquanto o mais novo se pôs de lado com medo, pois temia, e com razão, que se tratasse de um grupo de fantasmas, de espíritos de rãs metamorfoseadas em homens. Os irmãos pernoitaram numa cabana e dormiram na rede: o irmão mais velho, já bêbado, ficou com as pernas penduradas próximas ao fogo, e quando o mais jovem o avisou, ele gritou: “Akka, akka!” [como faz uma rã, nota do editor do site], encolhendo imediatamente as pernas. Depois soltou-as de novo sobre o fogo e só então notou que os seus dois pés estavam carbonizados. Aí pegou uma faca, decepou os pés, arrancou as carnes e afinou o osso da perna, deixando-o como uma lança. Deitado na rede, ele espetava então os passarinhos que passavam. Ele não tirava os olhos do irmão e este, então, escapou às escondidas; o irmão doente corre atrás dele apoiando-se nas pontas dos ossos, e no caminho espetou com suas pernas feito lanças, uma corça pensando que era o irmão. O mais jovem voltou correndo para a tribo e avisou os outros. Eles atraíram o doente para fora da rede, cercaram-no e o mataram. (VON FRANZ, 1992, p. 115-116)
     Ora, a analogia com o filme é flagrante. No conto, o irmão mais velho adota como mania o ficar espetando os animais e as pessoas com as pernas decepadas, seu defeito adquirido. Ele perdera os pés, isto é, sua capacidade de estar em contato com a realidade. No filme, as pessoas morrem, mas continuam a “viver”, embora não como humanas, nem como animais, mas de forma estranhamente sobrenatural. Também não são mais deste mundo. Tudo o que sabem é morder as outras pessoas para contaminá-las. A analogia com certas manias recentes também é flagrante: o “curtir” do Facebook, as modas ultrarrápidas do consumo, as trocas por tecnologias mais atuais, enfim, o consumo pelo consumo. Simbolicamente, é pela boca que explícita e figuradamente mais “consumimos”, sejam alimentos, sejam outras pessoas, através da difamação, reduzindo os outros.
     Porém, estranhamente, os zumbis não contaminam pessoas que já estão predispostas à morte, pessoas que estão contaminadas por qualquer doença que as predisponha à morte prematura. Em “História da arrogância”, Zoja (2000) explica como o homem contemporâneo é ansioso por conforto, e o quanto ele procura negar a morte, a doença, a feiura, usando, para isso, principalmente de métodos farmacêuticos. O homem procura afastar de si tudo o que lembra o aspecto do sofrimento relativa à existência humana. Ultimamente, sobressaem-se notícias de que certos cientistas estejam trabalhando à procura de uma panaceia, que contribuiria para a consecução da “vida eterna”. Entretanto, apesar disso, surgem novas doenças, novas guerras, novos tipos de comportamentos inconscientes destrutivos, entre eles, a drogadição. É como se a morte se impusesse de uma forma ou de outra, apesar de qualquer esforço em contrário. De volta à trama dos zumbis, a cura final se dá com a infecção das pessoas com uma espécie de soro que as contamina com algum tipo de doença, o que as faz aparentemente imperceptíveis aos “mortos-vivos”. Ironia: quando o ser humano abraça a morte e a doença, então os zumbis param de ataca-lo.
     Não quero aqui fazer apologia à morte ou à doença, mas a mensagem do filme é clara ao afirmar que o remédio para o consumismo atual, seja na forma de dependência química, do consumismo desenfreado ou da insatisfação sem sentido, não é a repulsa ao sofrimento. Este deve ser aceito como condição natural do ser humano, e talvez mais necessário à vida e ao desenvolvimento do lado sentimental. Sem este, o homem não aprende a conviver com o outro, nem a viver consigo mesmo. Tal como já vivenciei várias vezes na prática psicoterápica, a fuga geralmente não é saudável, exceto enquanto o ego ainda não se encontra em condições de encarar de forma mais realista sua condição interna.
     E isso talvez seja ainda mais uma pista para a situação do homem contemporâneo: seu desenvolvimento psíquico não está indo de encontro ao fortalecimento do ego, à sua maturidade, daí sua suscetibilidade, sua carência de sentido. Ele não é forte o suficiente para encarar a realidade da vida, sua dureza, sua crueza. Por outro lado, ele também está tendendo a abandonar, cada vez mais, o aspecto espiritual da vida, com a ajuda do qual podia lidar com as agruras do dia a dia. O médico está se transformando no sacerdote da alma, entendida aqui como uma espécie de fisiologia do corpo. E o filme denuncia isso através da vacina. Os personagens não atentam para a condição sobrenatural que os mortos-vivos personificam. Ela aponta para o lado espiritual. Os zumbis podem não mais atacar, mas continuam presentes no final. Procuram apenas incinerá-los, pois não há mais o que fazer, já que as pessoas foram reduzidas a mortos horríveis e animados. Qual será o próximo passo? Espero que não deixem de responder também a isso.

REFERÊNCIAS
Von Franz, Marie-Louise. Reflexos da alma. 1. ed. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992.
ZOJA, Luigi. História da arrogância. São Paulo: Axis Mundi, 2000.