Amizade, em princípio, deveria ser inseparável do autoconhecimento, assim como qualquer outro relacionamento que possua certa profundidade. Ser amigo não é apenas confiar e ser leal, mas aceitar o outro incondicionalmente, com suas qualidades e defeitos, embora a aceitação desses defeitos não signifique concordar com eles. Aceitar as inferioridades do outro é não se espantar, não se horrorizar, isso como conseqüência de se saber das possibilidades do próprio comportamento em condições semelhantes ou piores. É ter primeiro a coragem de admitir aspectos na própria personalidade que não correspondem à expectativa geral – daí a possível capacidade de se aceitar o lado negro do outro.
Deixar o outro ser ele mesmo enquanto se está ali, perto dele, naquele instante. Saber que não adianta lutar, esbravejar, matar, nem degolar, que a pessoa continuará sendo o que sempre foi. Mudar é impossível quando é essa a intenção. Como se pode mudar quando a própria pessoa é o agente da mudança? No entanto, é quando há uma rendição ao que se é, tal qual se apresentam as partes “boas” ou “más” da personalidade, quando não se resiste ao mal, aí é que, como uma dádiva, a mudança ocorre. Isso ocorre, porém, devido à compreensão alcançada; também, porque a mudança sempre parte do ponto que se quer mudar e, se este não é aceito, nenhuma transformação ocorre. Parece que não existe alguém totalmente perfeito ou isento de erros, e se existe, provavelmente não é humano, de acordo com a máxima bastante conhecida: “errar é humano”. Tudo indica que só se pode ser bom até certo limite, além do qual tem que haver algum reconhecimento do “defeito”, da “mancha”. Apenas existe a opção pelo melhor se houver a percepção de que se pode escolher o pior, que está tão disponível quanto aquele. Portanto, para haver a paz deve haver a aceitação da diferença; deve-se ser inteiro e não unilateral. Desta maneira, Cristo está psicologicamente correto quando diz: “a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil.” (Mt 5, 39-41). Figuradamente, é como se ele dissesse: “Se no que você acha que está certo o outro lhe bate (face direita), deixa-o bater então no que você tem certeza que está errado (face esquerda)”. Essa atitude corresponde simbolicamente a se colocar numa cruz, pendurar-se nos lados opostos (certo e errado, direita e esquerda), cada um dos quais puxa para o seu lado. É costume se interpretar os ensinamentos cristãos ao nível exterior, com relação aos outros lá fora, e não com relação aos outros que estão dentro da personalidade, o que é igualmente válido e talvez ainda mais significativo. Isso porque a aceitação dos aspectos interiores antes rejeitados invariavelmente implica na aceitação das outras pessoas que também portam esses aspectos.
Dificilmente uma personalidade será una. Ilude-se aquele que, apesar de ouvir as variadas vozes que clamam dentro de si, e que muitas vezes contradizem os próprios desejos e até necessidades, teima em achar que é apenas “João” ou “Maria”. Ter um nome traz a ilusão de ser alguém e não várias pessoas (uma multidão de desejos, pensamentos e sentimentos contraditórios). Infelizmente os in-divíduos (personalidades não divididas) são raríssimos. A humanidade está longe disso. Mas a amizade pode ajudar e muito nessa realização.
A amizade é, ou deveria ser, o espelhamento do outro. Alguém desesperado procura um amigo que, ao invés de desviá-lo daquilo que tanto o oprime, o espelha, procura compreender a sua condição, o estado em que se encontra, o(s) sentimento(s) que tanto o perturba(m), e expressar isso. Faz parte da educação ocidental, desde o berço, ensinar a rejeitar as emoções “negativas”: raiva, medo, rancor, mágoa, tristeza, decepção, etc., e a incentivar as positivas. Mas por quê? Parece que a principal razão é que as emoções “negativas” defendem o indivíduo, enquanto as “positivas” o integram aos outros e à sociedade. Porém, toda emoção negativa sempre tem um fundamento. Ninguém sente medo à toa, nem mágoa e nem decepção. Mas todos insistem em rejeitá-las. Se alguém faz “tempestade em copo d´água”, provavelmente isso ocorre não porque seja impulsivo, mas porque tem uma compreensão equivocada da situação. A emoção é a conseqüência desse ponto de vista parcial e limitado.
Miguel (nome fictício) rói suas unhas desde os 7 anos. Todo aquele que tem a compulsão de roer unhas sabe que o faz involuntariamente. Às vezes gostaria até de parar, mas “é o outro em mim que rói as unhas”, diz ele. Afinal, o que há nas unhas para Miguel querer comê-las? “As unhas protegem partes vulneráveis do nosso corpo (as pontas dos dedos) e acumulam sujeiras” – responde. Miguel também diz que um peito é menor que o outro, ao responder sobre qual parte do seu corpo não gosta. “Algo que o protege partes vulneráveis e que acumula sujeira – existe algo assim em sua vida?” Várias lembranças lhe ocorrem de como, quando criança, era obrigado a ajudar o pai na roça contra a sua vontade enquanto os irmãos não o faziam. “Ou eu ia ou levava uma surra.” Falou da mudança para a cidade, das dificuldades de adaptação, dos colegas que lhe batiam e de como aprendeu a suportá-los. Enfim, o que ele queria dizer é que a raiva era como suas unhas. A raiva protege suas partes vulneráveis (o ego) dos agressores e exige sua expressão. Aliás, o que vários animais fazem quando se sentem ameaçados é justamente “mostrar as garras”. Porém, ele quer “encurtar” a raiva ou, se fosse possível, extingui-la. “Para onde apontamos quando nos referimos a nós mesmos?” Imediatamente ele entendeu que o seu peito menor tinha algo a ver com a proteção que fazia questão de não ter ou que fosse a menor possível. Não é à toa que um indivíduo raivoso estufa o peito num ímpeto de exigir respeito. Coincidentemente, Miguel só pensara em parar de roer unhas quando começou a expressar seu rancor ao pai. Com o esforço da vontade, ele poderia até deixar o hábito de lado, mas com certeza ele ia ter que arrumar um outro jeito de roer sua raiva se não percebesse que precisava expressá-la de algum jeito. Hoje Miguel raramente rói unhas. É preciso que aceite outros aspectos ainda desconhecidos das suas garras.
Frases que expressam a compreensão do ouvinte em relação ao interlocutor são muito empáticas. O amigo ouve o outro colocando-se no seu lugar, tentando compreender como é perceber sua vida pelos seus sentimentos, e expressa eventualmente o quanto o está compreendendo por palavras que descrevem o seu estado. Esse feedback é útil para assegurar ao ouvinte de que realmente está acompanhando o outro e não está se desviando para pontos de vista pessoais.
Em determinadas situações ou momentos todos têm necessidade de falar. O falar da vida e de si mesmo transforma o indivíduo em observador da própria situação e distancia-o dela. Suspende-se a identificação com a situação perturbadora para conhecê-la a partir de um ponto de vista de fora da situação. Pois ninguém pode falar de si ou da situação porque passa sem observar a si e aos próprios comportamentos. De alguma forma o sujeito se torna mais real e objetivo, pois não se experimenta apenas subjetivamente. Fala-se de algo para alguém. Os pensamentos, sentimentos e fantasias que pairam por sobre a cabeça finalmente alcançam o seu objetivo: que o indivíduo lhes dê importância e atenção, que sejam compreendidos, e é talvez por isso que deixam de incomodar. Se há capacidade de relatar a alguém coisas tão íntimas e passíveis de crítica, é porque se está dando valor a essas pequenas coisas. Consequentemente, o sujeito está sendo ele mesmo para o outro, se aceitando de forma completa, e não resistindo à sua natureza. E aí, quando se entrega a tudo isso, e deixa de se molestar para ser o que não é, o indivíduo tem um sentimento de liberdade, de leveza e de unidade. É o efeito do “desabafo” e da autoexpressão. “Abafar” quer dizer primordialmente cobrir, seja para conservar o calor ou impedir a evaporação. Desabafar é descobrir, deixar escapar e sair aquilo que estava impedido ou bloqueado. Havia uma espécie de fornalha ou caldeira interior e se decidiu aliviar a carga, a pressão incômoda.
Há apenas mais dois pontos a enfatizar. A importância de não criticar e não aconselhar. Se alguém se incomoda com os sentimentos “negativos”, isso é sinal, normalmente, de que não está se importando de alguma forma com o auxílio que recebe da natureza para se proteger de ameaças externas. E criticar esses sentimentos não leva a lugar algum. Assim que a nuvem de confusão passar pela disponibilidade que oferece o amigo para ouvir e compreender, ela se dissipará e o caminho a tomar estará bem mais claro, ou pelo menos o que não se deverá fazer de imediato. Essa é a lealdade e a confiança para com o amigo. Quem passa por dificuldades não precisa de orientações, sejam na forma de crítica ou de conselho. As pessoas se sentem devidamente orientadas quando se sentem em paz com a vida, ao lado de amigos que percebem que cada um é diferente e carrega suas próprias fraquezas. É muito confortador quando se tem valor justamente por ser diferente e único.
É muito bom ter amigos e expandir o círculo de amizades. Com certeza não faz parte da amizade apenas o que foi abordado aqui. O amigo como o descrito atrás é essencialmente um companheiro de vida que compartilha não o mesmo sangue, mas o próprio ser, exatamente do modo como é. E quanto mais amigos possuir, maior o sentimento de expansão, pois a sensação é de que o eu do indivíduo não estará apenas dentro de si, mas também nos amigos. E não sentirá mais a divisão tão intensa que antes (não) percebia. Fará parte do mistério de ser um in-divíduo, unidade interior e exterior.