Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

A autoconsciência e o mundo


Há uma certa noção que deriva de uma focalização ou sentimento que às vezes me ocupa e me deixa intrigado. Percebo que estou aqui, à frente da tela do computador, que possuo um corpo, uma família, uma casa... Que posso fazer várias coisas e que tenho consciência de mim mesmo. Ocorre que sei, assim como vários filósofos já refletiram, que se eu não tivesse a minha consciência, nesse ponto de vista particular, meu, deste ponto de onde posso focalizar minha atenção em qualquer coisa, nada que se encontra ao meu redor existiria para mim. Desse modo, seria como se o mundo não existisse, apesar deste provavelmente levar sua existência totalmente à parte da minha possível existência. É intrigante levar essa consciência da existência exclusiva no mundo. Como pude nascer e chegar a ter essa consciência, nessa época específica da humanidade e estar aqui, neste momento, neste ambiente físico? Vejo as coisas ao meu redor, e ninguém mais tem a percepção que eu tenho, a partir deste ponto de referência (meus olhos e sentidos em geral). É um mistério!
O que é este eu que percebe as coisas ao redor? Ora, se eu nasci, cresci e agora tenho essa noção do mundo e de mim mesmo, como eram as coisas antes de mim e como serão depois? As coisas acontecerão sem eu para percebê-las? Se fui um acidente que ocorreu na natureza o qual me deu esse dom de autoconsciência, ocorrerá ele de novo? Terá ele já ocorrido alguma vez antes? Parece incrível, mas não posso imaginar o universo passar despercebido por mim... Ele não seria ou seria totalmente à parte, sem percepção. Por certo, outros podem percebê-lo, do mesmo modo como faço agora, mas de forma descontínua e muito particular, do mesmo jeito que eu.
O que sinto no final é a resposta ao conjunto de todas essas reflexões, mas não reflito para sentir isso que sinto. Essa noção vem na forma de certa percepção peculiar. Percebo esse mistério de ser esse observador (e agente) do mundo ao meu redor. É um sentimento de estranheza, de se ver fazendo parte de um processo que é contínuo (o mundo), mas descontínuo na sua percepção (meu ponto de vista), uma vez que nasci, tomei consciência e morrerei. Tenho conhecimento da história do mundo e das possibilidades de seu desenvolvimento. Mas percebê-lo, tomá-lo como objeto da minha percepção, é algo vivo, decorrente de uma realização imediata, palpável. E é isso que ocorre na forma de um “corte” que inicia no meu nascimento e termina na minha morte. O que está fora disso é “nada” para mim e para o universo não percebido por mim. Outros podem percebê-lo como eu, mas isso não passa de uma suposição da minha parte, uma crença, uma vez que não ocorre comigo, na minha experiência. Não tenho a pretensão de dizer que o que não ocorre comigo não ocorre com os outros, mas com certeza isso é só uma ideia, se comparada com a vivência que tenho a partir do meu ponto de vista.
De novo, o que fica é esse mistério de eu perceber o outro (mundo).
E você, leitor, já passou por esse sentimento intrigante?

Amizade - instrumento do autoconhecimento




Amizade, em princípio, deveria ser inseparável do autoconhecimento, assim como qualquer outro relacionamento que possua certa profundidade. Ser amigo não é apenas confiar e ser leal, mas aceitar o outro incondicionalmente, com suas qualidades e defeitos, embora a aceitação desses defeitos não signifique concordar com eles. Aceitar as inferioridades do outro é não se espantar, não se horrorizar, isso como conseqüência de se saber das possibilidades do próprio comportamento em condições semelhantes ou piores. É ter primeiro a coragem de admitir aspectos na própria personalidade que não correspondem à expectativa geral – daí a possível capacidade de se aceitar o lado negro do outro.
Deixar o outro ser ele mesmo enquanto se está ali, perto dele, naquele instante. Saber que não adianta lutar, esbravejar, matar, nem degolar, que a pessoa continuará sendo o que sempre foi. Mudar é impossível quando é essa a intenção. Como se pode mudar quando a própria pessoa é o agente da mudança? No entanto, é quando há uma rendição ao que se é, tal qual se apresentam as partes “boas” ou “más” da personalidade, quando não se resiste ao mal, aí é que, como uma dádiva, a mudança ocorre. Isso ocorre, porém, devido à compreensão alcançada; também, porque a mudança sempre parte do ponto que se quer mudar e, se este não é aceito, nenhuma transformação ocorre. Parece que não existe alguém totalmente perfeito ou isento de erros, e se existe, provavelmente não é humano, de acordo com a máxima bastante conhecida: “errar é humano”. Tudo indica que só se pode ser bom até certo limite, além do qual tem que haver algum reconhecimento do “defeito”, da “mancha”. Apenas existe a opção pelo melhor se houver a percepção de que se pode escolher o pior, que está tão disponível quanto aquele. Portanto, para haver a paz deve haver a aceitação da diferença; deve-se ser inteiro e não unilateral.
Desta maneira, Cristo está psicologicamente correto quando diz: “a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil.” (Mt 5, 39-41). Figuradamente, é como se ele dissesse: “Se no que você acha que está certo o outro lhe bate (face direita), deixa-o bater então no que você tem certeza que está errado (face esquerda)”. Essa atitude corresponde simbolicamente a se colocar numa cruz, pendurar-se nos lados opostos (certo e errado, direita e esquerda), cada um dos quais puxa para o seu lado. É costume se interpretar os ensinamentos cristãos ao nível exterior, com relação aos outros lá fora, e não com relação aos outros que estão dentro da personalidade, o que é igualmente válido e talvez ainda mais significativo. Isso porque a aceitação dos aspectos interiores antes rejeitados invariavelmente implica na aceitação das outras pessoas que também portam esses aspectos.
Dificilmente uma personalidade será una. Ilude-se aquele que, apesar de ouvir as variadas vozes que clamam dentro de si, e que muitas vezes contradizem os próprios desejos e até necessidades, teima em achar que é apenas “João” ou “Maria”. Ter um nome traz a ilusão de ser alguém e não várias pessoas (uma multidão de desejos, pensamentos e sentimentos contraditórios). Infelizmente os in-divíduos (personalidades não divididas) são raríssimos. A humanidade está longe disso. Mas a amizade pode ajudar e muito nessa realização.
A amizade é, ou deveria ser, o espelhamento do outro. Alguém desesperado procura um amigo que, ao invés de desviá-lo daquilo que tanto o oprime, o espelha, procura compreender a sua condição, o estado em que se encontra, o(s) sentimento(s) que tanto o perturba(m), e expressar isso. Faz parte da educação ocidental, desde o berço, ensinar a rejeitar as emoções “negativas”: raiva, medo, rancor, mágoa, tristeza, decepção, etc., e a incentivar as positivas. Mas por quê? Parece que a principal razão é que as emoções “negativas” defendem o indivíduo, enquanto as “positivas” o integram aos outros e à sociedade. Porém, toda emoção negativa sempre tem um fundamento. Ninguém sente medo à toa, nem mágoa e nem decepção. Mas todos insistem em rejeitá-las. Se alguém faz “tempestade em copo d´água”, provavelmente isso ocorre não porque seja impulsivo, mas porque tem uma compreensão equivocada da situação. A emoção é a conseqüência desse ponto de vista parcial e limitado.
Miguel (nome fictício) rói suas unhas desde os 7 anos. Todo aquele que tem a compulsão de roer unhas sabe que o faz involuntariamente. Às vezes gostaria até de parar, mas “é o outro em mim que rói as unhas”, diz ele. Afinal, o que há nas unhas para Miguel querer comê-las? “As unhas protegem partes vulneráveis do nosso corpo (as pontas dos dedos) e acumulam sujeiras” – responde. Miguel também diz que um peito é menor que o outro, ao responder sobre qual parte do seu corpo não gosta. “Algo que o protege partes vulneráveis e que acumula sujeira – existe algo assim em sua vida?” Várias lembranças lhe ocorrem de como, quando criança, era obrigado a ajudar o pai na roça contra a sua vontade enquanto os irmãos não o faziam. “Ou eu ia ou levava uma surra.” Falou da mudança para a cidade, das dificuldades de adaptação, dos colegas que lhe batiam e de como aprendeu a suportá-los. Enfim, o que ele queria dizer é que a raiva era como suas unhas. A raiva protege suas partes vulneráveis (o ego) dos agressores e exige sua expressão. Aliás, o que vários animais fazem quando se sentem ameaçados é justamente “mostrar as garras”. Porém, ele quer “encurtar” a raiva ou, se fosse possível, extingui-la. “Para onde apontamos quando nos referimos a nós mesmos?” Imediatamente ele entendeu que o seu peito menor tinha algo a ver com a proteção que fazia questão de não ter ou que fosse a menor possível. Não é à toa que um indivíduo raivoso estufa o peito num ímpeto de exigir respeito. Coincidentemente, Miguel só pensara em parar de roer unhas quando começou a expressar seu rancor ao pai. Com o esforço da vontade, ele poderia até deixar o hábito de lado, mas com certeza ele ia ter que arrumar um outro jeito de roer sua raiva se não percebesse que precisava expressá-la de algum jeito. Hoje Miguel raramente rói unhas. É preciso que aceite outros aspectos ainda desconhecidos das suas garras.
Frases que expressam a compreensão do ouvinte em relação ao interlocutor são muito empáticas. O amigo ouve o outro colocando-se no seu lugar, tentando compreender como é perceber sua vida pelos seus sentimentos, e expressa eventualmente o quanto o está compreendendo por palavras que descrevem o seu estado. Esse feedback é útil para assegurar ao ouvinte de que realmente está acompanhando o outro e não está se desviando para pontos de vista pessoais.
Em determinadas situações ou momentos todos têm necessidade de falar. O falar da vida e de si mesmo transforma o indivíduo em observador da própria situação e distancia-o dela. Suspende-se a identificação com a situação perturbadora para conhecê-la a partir de um ponto de vista de fora da situação. Pois ninguém pode falar de si ou da situação porque passa sem observar a si e aos próprios comportamentos. De alguma forma o sujeito se torna mais real e objetivo, pois não se experimenta apenas subjetivamente. Fala-se de algo para alguém. Os pensamentos, sentimentos e fantasias que pairam por sobre a cabeça finalmente alcançam o seu objetivo: que o indivíduo lhes dê importância e atenção, que sejam compreendidos, e é talvez por isso que deixam de incomodar. Se há capacidade de relatar a alguém coisas tão íntimas e passíveis de crítica, é porque se está dando valor a essas pequenas coisas. Consequentemente, o sujeito está sendo ele mesmo para o outro, se aceitando de forma completa, e não resistindo à sua natureza. E aí, quando se entrega a tudo isso, e deixa de se molestar para ser o que não é, o indivíduo tem um sentimento de liberdade, de leveza e de unidade. É o efeito do “desabafo” e da autoexpressão.
“Abafar” quer dizer primordialmente cobrir, seja para conservar o calor ou impedir a evaporação. Desabafar é descobrir, deixar escapar e sair aquilo que estava impedido ou bloqueado. Havia uma espécie de fornalha ou caldeira interior e se decidiu aliviar a carga, a pressão incômoda.
Há apenas mais dois pontos a enfatizar. A importância de não criticar e não aconselhar. Se alguém se incomoda com os sentimentos “negativos”, isso é sinal, normalmente, de que não está se importando de alguma forma com o auxílio que recebe da natureza para se proteger de ameaças externas. E criticar esses sentimentos não leva a lugar algum. Assim que a nuvem de confusão passar pela disponibilidade que oferece o amigo para ouvir e compreender, ela se dissipará e o caminho a tomar estará bem mais claro, ou pelo menos o que não se deverá fazer de imediato. Essa é a lealdade e a confiança para com o amigo. Quem passa por dificuldades não precisa de orientações, sejam na forma de crítica ou de conselho. As pessoas se sentem devidamente orientadas quando se sentem em paz com a vida, ao lado de amigos que percebem que cada um é diferente e carrega suas próprias fraquezas. É muito confortador quando se tem valor justamente por ser diferente e único.
É muito bom ter amigos e expandir o círculo de amizades. Com certeza não faz parte da amizade apenas o que foi abordado aqui. O amigo como o descrito atrás é essencialmente um companheiro de vida que compartilha não o mesmo sangue, mas o próprio ser, exatamente do modo como é. E quanto mais amigos possuir, maior o sentimento de expansão, pois a sensação é de que o eu do indivíduo não estará apenas dentro de si, mas também nos amigos. E não sentirá mais a divisão tão intensa que antes (não) percebia. Fará parte do mistério de ser um in-divíduo, unidade interior e exterior.