Com resumo do Fausto
Escrito por Adam McLean ©
Fonte: http://www.levity.com/alchemy/faust.html
Fausto invocando espíritos em seu laboratório |
O Fausto de Goethe é raramente representado no teatro inglês. O trabalho é demasiado enigmático e frequentemente desorienta e confunde seus espectadores. Além disso, os efeitos de palco, em especial as cenas da Parte 2, são tão difíceis de organizar de forma convincente, que não é nenhuma surpresa que os diretores e gerentes teatrais se afastem deste trabalho clássico. No entanto, a produção recente das duas partes do Fausto de Goethe no Lyric Theatre em Hammersmith (distrito localizado a oeste de Londres, à margem norte do rio Tâmisa – N. T.) abordou o trabalho vigorosamente e não evitou sublinhar seus aspectos alquímicos.
A alquimia no Fausto de Goethe é central para sua concepção dramática, e não foi adicionada meramente como efeito. O trabalho de Goethe sobre a história de Fausto (um conto já muito difundido na época – N. T.) difere de outros dramas baseados na lenda arquetípica de um mago que vende sua alma ao diabo, selando o pacto com uma gota de sangue e que, finalmente, padece o fogo do inferno. O drama de Goethe revela vários processos de transformação operando na alma humana, personificada por Fausto. Goethe esforça-se para tecer a jornada interior de Fausto na direção de uma solução, juntamente com as forças sociais coletivas que estão passando por transformações no decorrer do processo histórico. Por isso Fausto é também um representante dos europeus do norte em sua luta por evolução a partir das restrições e limitações da Reforma do século XVI para as novas aspirações da humanidade que Goethe viu desenvolver durante o Iluminismo no século XVIII.
O trabalho é muito complexo e multifacetado para que eu pretenda fazer mais do que pontuar alguns temas alquímicos na peça. [...] Precocemente, Goethe estudou extensivamente a literatura alquímica e ficou apto a elaborar uma alegoria ao estilo da alquimia. O conto de Fausto é uma alegoria da transmutação interior da alma, em que diferentes polaridades emergem e se juntam novamente. No conto duas terras separadas por um rio são reunidas por meio da transmutação alquímica, o que tem lugar em um templo subterrâneo. No seu Fausto, Goethe apresenta novamente a separação dos opostos que são reunidos em uma nova transformação. A primeira parte do Fausto segue de perto a estrutura do mito do Fausto, embora nos detalhes da ação introduza temas mais amplos que serão desenvolvidos na segunda parte da peça.
O pacto de Fausto com Mefistófeles |
A primeira parte se inicia com Mefistófeles apostando a alma de Fausto com Deus. Fausto havia se esforçado muito para conseguir a iluminação, estudou profundamente, e ansiava como resultado conhecimento e compreensão. Deus indica que Fausto atende sem compreender ao seu plano e que ele acabará por ser levado à luz, mas concede liberdade a Mefistófeles para tentar Fausto ao erro. Assim, Goethe altera sutilmente a história de Fausto em seu início fazendo um paralelo com o teste de Jó.
Na primeira parte da peça, Fausto é levado ao pacto com Mefisto, se desfaz de sua bata de acadêmico, deixa seus estudos e seu cubículo de estudos para trás, para mergulhar na aventura da vida. Sua sublime busca de conhecimento e estudo de Filosofia, Direito, Medicina, Teologia e Ciências reprimiu sua experiência dos sentimentos humanos. Quando Mefistófeles permite o fluir de suas emoções, não é surpresa que estas emerjam em uma forma adolescente e desintegrada. Com a malícia e a astúcia de Mefisto, Fausto persegue a jovem virgem Margarida e, finalmente, corrompe e destrói sua vida. Como é apresentado no seu conto, para Goethe o problema primordial da humanidade repousa na sua incapacidade de se relacionar com o componente feminino da sua natureza. Para Goethe, o desenvolvimento apropriado da alma humana consiste em estabelecer um relacionamento adequado entre os aspectos femininos e masculinos. Desse modo, a primeira parte do Fausto nos coloca ante o principal problema da alma de Fausto: sua dificuldade em se relacionar com o lado feminino do seu ser.
A segunda parte do trabalho é um drama verdadeiramente alquímico cujos cinco atos tecem uma complexa rede de temas. Goethe escreveu Fausto ao longo de um período de quase 60 anos, e o conflito que ele teve com esse material se mostra na incoerência aparente da segunda parte do drama. Se alguém lê a peça como uma alegoria hermética, as inconsistências do drama se dissolvem quando se percebe a estrutura subjacente às várias e diferentes cenas.
A invocação de Helena |
A Parte II começa com Fausto se recuperando, através do poder da natureza, dos embates emocionais que ele sofreu no episódio desastroso com Margarida. Na companhia constante de Mefistófeles, Fausto serve à corte do imperador. O império está em ruína financeira devido à extravagância da corte, mas Fausto e Mefisto oferecem uma solução a estes problemas. Até aquele momento a moeda do Império tinha sido o ouro, que não foi suficiente para suportar os grandes gastos. Mefisto sugere uma fácil solução: já que, sem dúvida, havia muito ouro ainda por se descobrir abaixo da terra, o qual pertencia ao imperador, então, certamente, poderia ser feita uma nota promissória no valor desse ouro. Ele cobre a corte com o dinheiro de papel novo. A fundação do Império foi transferida, através da astúcia de Mefisto, da segurança do ouro metálico para as promessas insubstanciais do papel. Fausto, exercendo a função de mago, é convidado pelo imperador a evocar o espírito de Helena de Tróia. Goethe está aqui aproveitando a história de Johannes Trithemius evocando espíritos ante o imperador Maximiliano. (Esta cena também foi incluída por Marlowe na sua Trágica História da Vida e Morte do Doutor Fausto (1593). Curiosamente, Trithemius parece ter encontrado a histórica personalidade de Georgius Sabellicus, um aventureiro mágico, por quem tinha pouca consideração, que adquiriu o nome e a reputação de Fausto no início do século XVI.)
Novamente Fausto procura fazer algum contato com o feminino, desta vez na forma da bela e idealizada heroína da lenda grega. Para consegui-lo, ele precisa entrar no reino das mães, fora do tempo e do espaço, nas profundezas da terra. Os espíritos de Páris e Helena são convocados, e a corte assiste ao seu encontro como que através de uma cena vívida em uma tela. Fausto, impressionado pela beleza de Helena, fica com ciúmes de Páris, o qual a abraça. Esquecendo-se, Fausto salta para o círculo mágico com os espíritos e tenta agarrar Páris.
A criação do Homúnculo |
O segundo ato toma lugar no antigo laboratório de Fausto, onde seu discípulo Wagner, acompanhando os estudos de seu mestre, acabou de concluir o trabalho e produziu um homúnculo alquímico, um homem que vive num frasco. Wagner produziu este homúnculo fora dos meios naturais normais de concepção. Este homenzinho no balão de vidro encontra-se fora do domínio da natureza – uma alma e um espírito sem um corpo material adequado. O Homúnculo leva Mefisto e o ainda inconsciente Fausto para o mundo clássico da Grécia Antiga, onde ele procura se tornar um ser humano completo fora da retorta. O Homúnculo é um ser de fogo: seu frasco brilha com uma estranha luz, e através de uma discussão com dois filósofos antigos, ele conclui que deve procurar unir-se com o elemento água, a fim de alcançar um completo nascimento, e se tornar um ser real fora do fechado mundo do seu frasco. Ele encontra Proteus, um deus mutante que constantemente muda sua forma, e se aproximam do mar. Com o incentivo de Proteus, o Homúnculo submerge nas ondas em seu frasco e busca unir-se a Galatea, uma ninfa do mar, Deusa do oceano. A luz da retorta ilumina as ondas e, sob os pés de Galatea, o frasco se quebra e sua essência ígnea entra na água. Os quatro elementos são levados a uma nova harmonia através desse tipo de união sexual mística. Esta submissão voluntária do Homúnculo para com Oceano, aqui retratado como elemento feminino, é contrastada mais tarde na peça com a própria tentativa de Fausto, no quarto ato, em conter e prender forças elementares do oceano, uma espécie de ato de estupro cometido contra a ordem natural, que o leva diretamente à queda.
Através da figura de Homúnculo, central para a peça, Goethe ilustra que o caminho que a humanidade trilha em busca do renascimento da iluminação em seu ser, encontra-se em seu próprio interior: constitui o reconhecimento e a aceitação do componente feminino da alma. É a evasiva de Fausto em relação ao seu lado feminino que o leva de encontro a todas as suas dificuldades, pois ele sempre escolhe ser guiado por Mefistófeles. Se pensarmos em Mefisto como uma parte da alma de Fausto, um alter-ego, é significativo que esta figura de trickster tenha uma perspectiva muito masculina, até mesmo machista. Fausto sempre projeta o feminino para fora de si.
Na próxima parte da ação Fausto busca Helena no submundo montado no centauro Quíron, e com a ajuda de Manto, a profetisa.
Mefisto, se disfarça como Fórcis, engana e convence Helena a ir morar com Fausto em seu castelo na região norte. Helena aqui representa exatamente a beleza clássica, mas também a sensualidade reprimida do mundo grego – um mundo que Mefisto considera desconfortável por carecer de um sentido digno de pecado, e sem o dualismo ele não têm como trabalhar suas decepções. Fausto vive com Helena e carregam uma criança: Eufórion. Este é impetuoso, e procura, como Fausto, elevar-se acima do mundo terreno, subir para as alturas e tomar o céu de assalto. Fausto agora vive em harmoniosa e feliz união com Helena. Suas lutas torturantes passadas agora não fazem mais nenhum sentido. Estas são projetadas em Eufórion. Depois de tentar violentar uma mulher, Eufórion morre como Ícaro, ao tentar voar alto no céu. A união de Fausto e Helena é desfeita, e esta retorna ao submundo de Perséfone com a alma da sua criança.
O próximo ato nos leva de volta ao imperador que agora está em guerra. Fausto, com o sempre útil Mefistófeles, auxilia o Imperador e lhe permite triunfar sobre o inimigo, em troca dos direitos sobre a costa do seu reino. O grande plano de Fausto agora é estender a terra até o mar, para represar o oceano.
No último ato Fausto completou grande parte do seu grande projeto de afastar as energias primordiais do oceano, e estabelecer sua própria terra, como tentativa de redesenhar o ambiente natural. Ele está frustrado devido a um casal de velhos, Baucis e Filêmon, os quais detêm uma cabana e uma capela em terreno estratégico, que Fausto quer moldar de acordo com seu próprio design. Goethe tece em seu drama, o mito clássico de Baucis e Filêmon, um casal de idosos da Frígia que forneceu abrigo a Zeus e Hermes enquanto estes caminhavam incógnitos pela terra. Todos se recusaram a hospedar os viajantes, que enviaram um grande dilúvio sobre a terra. Somente Baucis e Filêmon foram salvos e recompensados. Sua cabana foi transformada em templo dedicado a ofícios sacerdotais. No último ato da peça de Goethe, Fausto pretende mudar-lhes a localização do espaço sagrado e Mefisto envia capangas para expulsá-los. No entanto, o casal de idosos morre na luta e a casa é queimada até o chão. Nesta tragédia Fausto perde a visão.
Em suas últimas horas ele tenta avançar com o seu grande plano em drenar os pântanos e estabelecer um grande paraíso na Terra, conquistado a partir do leito do oceano. Ele acredita que a humanidade, através da luta contra as forças da natureza, se tornará livre. Ironicamente, Mefistófeles leva o cego Fausto a acreditar que os operários estão concluindo o trabalho de sua vida, quando eles estão, na realidade, cavando a sua sepultura. Fausto morre acreditando que seu plano estava se realizando.
Goethe traz a peça ao fim com uma cena de difícil entendimento. Mefistófeles vem à frente do enterro para buscar a alma de Fausto, sobre a qual tem todo direito. Entretanto, anjos descem do alto e, enquanto alguns deles distraem Mefisto, cortejando-o, outros levam a alma de Fausto ao céu. O espírito de Fausto é levado pelos anjos por meio de um coro de eremitas e abençoadas almas para a presença de Maria, a Mãe Gloriosa. O espírito de Margarida agora aparece e intercede por ele e a Mãe Divina diz que seu espírito pode passar à mais alta esfera. As palavras finais da peça ecoam a importância do feminino neste processo de redenção.
Tudo o que morre e passa
É símbolo somente;
O que se não atinge,
Aqui temos presente;
O mesmo indescritível
Se realiza aqui;
O feminino eterno
Atrai-nos para si.*
A cena final do Fausto de Goethe sempre foi, para mim, insatisfatória, deixando muito da intensidade de expressão do drama não resolvido. Percebi que a produção não removia completamente as minhas dúvidas, apesar de parecer funcionar muito bem dramaticamente, com uma resolução ou liberação após o clímax de Fausto sendo levado ao céu. Mais tarde, depois de meditar sobre a experiência, cheguei a ver mais claramente o que Goethe pretendia.
Fausto foi escrito ao longo de muitos anos e percebe-se que Goethe estava tentando refazer o mito da reforma dualista do Doutor Fausto vender sua alma ao diabo, em uma nova concepção alquímica da transformação através de suas experiências difíceis das polaridades internas do seu ser . Em uma visualização inicial ou leitura da peça, a cena final não nos apresenta um Fausto que efetuou a transformação interior do seu ser, que o permitiria escapar ao pacto com Mefistófeles. Em vez disso, Mefisto é enganado pelos anjos com um truque normalmente atribuído a ele mesmo. Margarida aparece como a alma penitente intercedendo junto à Mãe de Deus e se oferece para atuar como guia para a alma de Fausto no reino espiritual. Mas isto é inicialmente desconcertante à nossa percepção do verdadeiro caminho alquímico que seguramente deve ser tentar alcançar este encontro interior com a faceta feminina de nossa alma em nosso corpo, e não adiar tal desenvolvimento interior a uma vida após morte no mundo espiritual.
Cartaz do filme "Fausto" (1926) |
A ascensão de Fausto ao espírito ocorre inesperadamente no drama. As diferentes polaridades são resolvidas - o Deus Pai, no início da peça, coloca Fausto em dificuldades, ao passo que a Deusa Mãe libera-lo de suas obrigações e permite-lhe entrar no mundo espiritual. É fácil de visualizar esta solução, em vez de estilizá-la e impô-la ao o fluxo do drama. Goethe, é claro, foi uma alma mais profunda e não teria se curvado a sustentar um final feliz ao estilo de Hollywood.
Parece-me que, se nos concentramos em Fausto como personagem principal da alegoria, então não encontraremos a transmutação ou desenvolvimento interior que resolve satisfatoriamente o drama alegórico. Se seguirmos uma interpretação onde todos os personagens individuais são submetidos a alguma transformação, e, ainda, que em certo sentido todos os personagens individuais poderiam ser vistos como partes de nossa própria alma, então talvez o Fausto de Goethe comece a ganhar coerência.
Nós temos que perceber Fausto e Mefistófeles como duas partes da alma humana. Mefisto não é o diabo arquetípico, mas uma parte de Fausto que foi reprimida por sua imersão em uma Filosofia e Teologia que salientou o Deus patriarcal. O aspecto Mefisto barganha com essa figura patriarcal no início da peça como uma oportunidade de revelar-se e influenciar a vida de Fausto. As primeiras tentativas de Fausto de conjurar nas primeiras cenas da Parte I são falhas, porque ele tenta dominar e impor sua vontade sobre os espíritos elementares através do seu livro de instruções. Mas quando Fausto encontra Mefisto, sua faceta reprimida, então ele abandona seu trabalho anterior. Se Fausto tivesse permanecido fiel ao seu trabalho alquímico filosófico (como foi realizado e continuado por seu discípulo Wagner), na sequência ele formaria o Homúnculo, um ser de alma e espírito, mas sem corpo. O Homúnculo também deve ser visto como um aspecto de Fausto, um aspecto que é capaz de estabelecer uma relação submissa com o feminino. Margarida, desta vez, pode ser percebida como um aspecto de Fausto que surge após seu encontro com a figura de Mefistófeles. Fausto, nesta fase, ainda é incapaz de reconhecer o feminino em si mesmo. Daí ele usar a figura de Margarida egoisticamente, o que culmina com a execução desta devido às suas ações.
A morte do aspecto Margarida, no final da Parte I, é um acontecimento de grande importância no drama. Na Segunda Parte, Fausto, em vez de olhar mais profundo dentro de seu ser para o feminino, volta-se para a figura idealizada, mítica e feminina de Helena.
Noite de Walpurgis |
Durante a visita à clássica e grega Noite das Bruxas de Walpurgis, Mefisto mostra suas fraquezas 'humanas' nesse território desconhecido, onde o sentido protestante de pecado do norte da Europa não funciona de forma tão consistente. Ele descobre que é impotente contra quem não têm o sentido do pecado fundado sobre o dualismo. Mefisto é alterado interiormente por suas experiências e, posteriormente, na cena final, no seu flerte com os anjos, ele perde a alma de Fausto. A relação dinâmica dos aspectos Fausto e Mefisto, que excitou a trama desde o início, é então cortada pelo namorico de Mefisto com os anjos. O personagem Mefisto no início da obra teria sido muito cínico para cair neste truque. De fato, através da ação dramática, até o final da Parte II, Mefisto parece ter absorvido algo das fraquezas do caráter de Fausto.
Os principais personagens da peça são, assim, aspectos polarizados de uma alma humana, cuja jornada de individuação é demonstrada no drama.
Esquema de polarização dos personagens no drama. |
Podemos reconhecer Fausto como o núcleo de uma vida complexa dentro de uma rede de polaridades: Helena, o ideal feminino arquetípico, e Margarida, a mulher terrena a partir da qual ele se isola; o Homúnculo, um potencial guia interior da alma hermafrodita, que poderia ter se desenvolvido em seu ser se ele se ativesse ao seu trabalho alquímico. No entanto, ele se volta para a figura de Mefisto, para se orientar. No final da obra é despojado de todas essas polaridades e fica aberto e vulnerável à morte.
Se virmos Fausto desta forma, então as dificuldades colocadas pela cena final se dissolvem e a alegoria alquímica se revela claramente. Goethe queria que lêssemos todo o drama e não que nos identificássemos com o personagem Fausto, mas com a teia de personagens, parte da figura integral que pretendia pôr diante de nós. Goethe sempre procurou propositadamente confrontar suas plateias e leitores para levá-los além da avaliação intelectual de suas ideias. Para compreender os enigmas alegóricos em Fausto, não se requer a mera análise intelectual do drama e dos personagens, mas um encontro com Mefisto, Gretchen, Helena, o Homúnculo, bem como com o Fausto dentro de nós mesmos.
* Tradução extraída de:
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. São Paulo: Martin Claret, 2004.
PEQUENO COMPLEMENTO DO AUTOR DO BLOG
Como observou McLean, “em todas as cenas em que aparece o Homúnculo, Fausto está inconsciente ou ausente da cena”. O Homúnculo no Fausto é um ser sem corpo e constituído apenas de alma e espírito. Fausto, no início da peça, também parece ter apenas alma e espírito, pois não experimentara os prazeres da carne, o que efetiva apenas com Margarida. O Homúnculo, por sua vez, está em busca de um corpo onde possa habitar, e isso constitui simbolicamente a busca de Fausto, cuja solução é oferecida por Mefisto. O corpo, por sua vez, representa a parte material do homem, tida essencialmente como feminina. E Fausto tenta esse encontro ou conjunção com o feminino por duas vezes nas figuras de Margarida e Helena: mas nessas duas conjunções ocorre o malogro do produto dessa união de opostos: o aborto do filho de Margarida e a morte de Eufórion, filho com Helena. Entretanto, a verdadeira união com o feminino só ocorre no final e no âmbito espiritual, como se a união com o feminino no âmbito material não pudesse ocorrer, ou estivesse fadada ao fracasso. Isso lembra uma passagem de Jung muito pertinente à presente análise:
A percepção da realidade do instinto e a sua assimilação nunca se dão no extremo vermelho, ou seja, pela absorção e mergulho na esfera instintiva, mas apenas por assimilação da imagem, que significa e ao mesmo tempo evoca o instinto, embora sob uma forma inteiramente diversa daquela em que o encontramos ao nível biológico. [...] O mergulho na esfera dos instintos, portanto, não conduz à percepção consciente do instinto e sua assimilação, porque a consciência luta até mesmo em pânico contra a ameaça de ser tragada pelo primitivismo e pela inconsciência da esfera dos instintos. Este medo é o eterno objeto do mito do herói e o tema de inúmeros tabus. Quanto mais nos aproximamos do mundo dos instintos, tanto mais violenta e a tendência da a nos liberar dele e a arrancar a luz da consciência das trevas dos abismos sufocadores. Psicologicamente, porém, como imagem do instinto, o arquétipo é um alvo espiritual para o qual tende toda a natureza do homem; é o mar em direção ao qual todos os rios percorrem seus acidentados caminhos; é o prêmio que o herói conquista em sua luta com o dragão. (JUNG, 1991a, p. 216-217)
Esquema psíquico na mulher e no homem |
Fausto tenta violentar, iludir e controlar a natureza, mas nunca obtém seu intento. A conjunção final com o feminino parece mais obra de uma graça divina do que coroação de seus esforços. Pode-se perceber a morte de Fausto, no final, como a morte do ego e sua rendição ao Si-mesmo. O bem e o mal foram relativizados: o próprio Mefisto, Senhor da mentira, é enganado por anjos.
Essa obra de Goethe contém várias alusões à psique. Não é por acaso que Jung a cita tanto em suas obras. Aliás, como sua mãe a lera ao menino Jung, Fausto constitui certamente uma das vias porque percorreu o grande psicólogo na busca pela síntese psicológica que constitui sua obra máxima.
Leia também: "Análise de Viva La Vida, de ColdPlay".
RECOMENDAÇÃO PARA LEITURA:
- Fausto: uma Tragédia - Primeira Parte, de Johann Wolfgang von Goethe, TRADUÇÃO: Max Beckmann, Jenny Klabin Segall, Editora 34, ISBN: 8573262915, Ano: 2004.
- Fausto: uma Tragédia - Segunda Parte, de Johann Wolfgang von Goethe, TRADUÇÃO: Max Beckmann, Jenny Klabin Segall, Editora 34, ISBN: 9788573263732, Ano: 2007.
Leia também: "Análise de Viva La Vida, de ColdPlay".
RECOMENDAÇÃO PARA LEITURA:
- Fausto: uma Tragédia - Primeira Parte, de Johann Wolfgang von Goethe, TRADUÇÃO: Max Beckmann, Jenny Klabin Segall, Editora 34, ISBN: 8573262915, Ano: 2004.
- Fausto: uma Tragédia - Segunda Parte, de Johann Wolfgang von Goethe, TRADUÇÃO: Max Beckmann, Jenny Klabin Segall, Editora 34, ISBN: 9788573263732, Ano: 2007.
6 comentários:
maravilha. despretensioso e consistente. um ótimo guia para a leitura da obra que tb permite ao leitor curioso se aprofundar em elementos mitológicos que complementarão sua formação como leitor e apreciador de literatura. parabéns e obrigado. recomendarei a leitura.
Obrigado, Roberto!
Fantástico! Sem este texto, não teria compreendido tão bem a obra. Muito obrigado!!
Obrigado, Álvaro! Fico feliz em saber sobre o quão útil foi o texto.
Concordo plenamente com o Álvaro. Tenho um seminário para apresentar amanhã na faculdade sobre o Fausto, e mesmo tendo lido duas vezes não tinha conseguido alcançar o âmago da obra. Sua explicação foi maravilhosa, e me permitiu ver coisas que eu provavelmente só teria visto depois de meses, talvez anos, estudando tanto a obra de Goethe, como obras alquímicas de outros autores. Gostei principalmente do comentário sobre como a parte final da obra não agradou, que Goethe não faria um final estilo Hollywood. Foi exatamente essa a sensação de indignação que eu tive com o final, e estava me debatendo para entender. Obrigado, continue o trabalho maravilhoso.
Obrigado, Caminhante!
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