Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

Bad boys ou reimaginando a educação de meninos (TRADUÇÃO)

 (Tradução de Charles Alberto Resende do trecho nomeado Bad Boys,
parte do capítulo 8, Male Psychology, do livro Knights Without Armor
– A Guide to the Inner Lives of Men, de Aaron R. Kipnis, Ph.D.
)

1. INTRODUÇÃO POR CHARLES A. RESENDE


     Knights Without Armor (Cavaleiros Sem Armadura), de Aaron Kipnis, foi lançado há trinta anos, em 1991, nos EUA. É um clássico dos livros para homens infelizmente ainda não traduzido para o português, assim como muitos outros do gênero que encontramos no exterior. Livros como este foram encabeçados por João de Ferro, de Robert Bly, já bastante conhecido. Posso dizer que este livro lançou luz como nenhum outro até este momento, sobre o quanto nossa cultura ainda é sexista, e talvez ainda seja machista, mas com certeza é muito feminista. E as mulheres não são as menos prejudicadas por esse viés sexista. Os homens sofrem de depressão e expressam sua negação por meio da violência verbal, física e de outras formas comportamentais. Espanta-me como os governos e a mídia enfatizam a punição dos homens abusadores das mulheres, mas não promovem uma educação psicológica masculina. Afinal, embora a vítima tenha sido abusada recentemente, o abusador em geral o foi desde a infância, principalmente como parte de uma cultura que impõe uma visão de homem que não chora, não se emociona, e tem que ser forte em todas as circunstâncias. O que o homem faz às mulheres e outros homens, faz primeiro à sua alma. Sua violência é reflexo disso: da violência contra si mesmo. Até que ousamos retirar a armadura e viver o dia comum, sem batalhas internas manifestadas no mundo.
     O texto a seguir trata do aspecto da educação dos meninos, e explica como o sexismo e o não respeito ao menino como ele é o transforma num adulto machista e abusador, primeiro de si mesmo, e depois de homens e mulheres. Ele estimula outras visões de antigos problemas. 

2. TEXTO TRADUZIDO

     Hoje, a maioria das salas de aula da escola primária prefere um ambiente feminino. Asseio, conformidade, quietude, polidez, habilidades verbais e outras virtudes historicamente femininas são altamente enfatizadas ali. Mas os meninos costumam ser mais ativos, desordenados e agressivos e menos verbais do que as meninas. Consequentemente, os meninos têm maiores taxas de reprovação e são percebidos como tendo mais problemas de personalidade na escola. Como são socializados para serem mais autônomos, geralmente têm menos interesse em agradar o professor do que as meninas. Frequentemente, ficam frustrados com exercícios repetitivos de habilidades – nas quais são os mais fracos. Em seguida, eles são rotulados como tendo transtornos de déficit de atenção. Mas, por muitos motivos, costuma ser mais difícil para os meninos ficarem sentados em uma sala de aula. Eles são inquietos e enérgicos, não são maus ou anormais. 

     Em muitos casos, drogas como a Ritalina são usadas agora para acalmar os meninos, em vez de os educadores examinarem seriamente o estilo de ensino, os valores e a estrutura da sala de aula. Não damos drogas a meninas gentis para normalizá-las e torná-las mais assertivas. Se os meninos são mais divergentes, isso pode indicar uma falha em nosso sistema educacional em acomodar os diferentes estilos de gênero e modos de aprendizagem de meninos e meninas. Espera-se que os meninos se adaptem a um ambiente que muitas vezes é contrário à sua autoimagem masculina. Eles geralmente carecem de uma forte presença masculina que pode nutrir o desenvolvimento de sua masculinidade profunda e conter sua agressividade com destemor e firmeza amorosa. Eles podem se rebelar contra o controle ou as críticas da mãe-escola.

     Se eles se rebelarem o suficiente, rapidamente chamarão a atenção de agências sociais e disciplinadoras. O castigo corporal é uma forma institucionalizada de abuso infantil ainda praticada em vinte e três estados dos EUA. Este abuso é predominantemente dirigido a meninos e afeta cerca de dois milhões de alunos, com até vinte mil deles procurando atendimento médico para contusões todos os anos. Esse fenômeno é consistente com o ambiente doméstico dos meninos, onde eles geralmente são submetidos a um maior grau e frequência de punição física e abuso do que as meninas. Os meninos também são drogados, hospitalizados e trancados em instituições juvenis com muito mais frequência do que as meninas.

     A energia selvagem e masculina da caça é percebida como hiperatividade, inconformidade e baixo ajuste social. Mas a maioria das patologias é específica da cultura. O que é considerado comportamento normal em um momento e lugar é uma loucura em outro. Em uma sociedade de caçadores, a ânsia inquieta dos meninos por ação seria satisfeita pelos homens mais velhos com elogios, incentivo e orientação positiva. Mas em nossa cultura urbana, é mais frequentemente condenada e rotulada como patológica. Meus adolescentes “desviados” no deserto explicaram este ponto para todos que trabalharam com eles. Suas personalidades mudaram positivamente em resposta à experiência de si mesmos como adaptados com sucesso para a sobrevivência no contexto desafiador da região inóspita.

     Precisamos dar uma outra olhada na coeducação1 e perguntar se ela realmente é a melhor ideia para todos os meninos em todas as classes. Se persistirmos na coeducação, não deveríamos ter pelo menos algum período do dia ou da semana em que os meninos estejam na companhia apenas de outros meninos e homens? E não deveria ser outro senão o ambiente competitivo dos esportes, o treino de agressividade do ROTC2, ou o ambiente punitivo das aulas de ajuste social?

     Na Grécia antiga, os jovens eram educados enquanto caminhavam ao lado de seus colegas e professores. Isso satisfez a necessidade de seus corpos por atividade e estimulação, enquanto simultaneamente envolvia suas mentes em pensamentos abstratos. Este estilo de educação pode ser mais favorável a um estilo de aprendizagem preferido e específico para homens. Uma conselheira e professora do sistema escolar de Los Angeles recentemente me disse que tem experimentado ensinar meninos ao ar livre. Ela relata que nessas ocasiões eles parecem menos agitados. Eles se sentem mais livres para mover seus corpos e são mais estimulados pelo ambiente ao redor. Isso os faz sentir menos entediados. Em vez de se distrair da instrução, ela descobriu que eles diminuem o mau comportamento, que sua capacidade de atenção aumenta e que sua escrita e compreensão melhoram significativamente.

     Os meninos precisam de um ambiente para onde possam extravasar ocasionalmente sua turbulência, ou onde seja até mesmo apreciada, não sejam envergonhados ou controlados e repetidamente instruídos a ficarem quietos e parados. Talvez precisemos instituir cursos como bateria de conga para meninos, dança de rap, prática de banda de rock ou alguma outra atividade barulhenta, física, agressiva, desordenada e não competitiva, pela qual os meninos poderiam receber tanto crédito quanto por boa ortografia. Os treinamentos em oficina também precisam receber um status maior e considerados tão aceitáveis quanto os cursos preparatórios para a faculdade.

     Os meninos precisam ter sua agressividade direcionada e limitada de uma forma que não os envergonhe por serem fisicamente dinâmicos – talvez algo como um circuito de desafio de cordas em que os participantes sobem em cabos e cordas, combinando assumir riscos com trabalho em equipe e construção de confiança. Ou os meninos podem preferir aprender matemática e geometria no contexto concreto de construir uma casa juntos, em vez do contexto abstrato da sala de aula, onde devem se desconectar da energia em seus corpos.

     Esportes cooperativos e projetos como esses também contribuem muito para a construção de bases para uma comunidade de homens emotivos (soulful males), em vez de colocar os jovens uns contra os outros de maneira a plantar as sementes da alienação futura em relação a outros homens. A solidão, o isolamento e a baixa autoestima são devastadores para a psicologia dos rapazes. Essas experiências são o solo fértil de onde crescem as sementes do comportamento antissocial. Neste momento de nossa cultura, precisamos nos concentrar tanto na construção da autoestima dos meninos quanto nas habilidades acadêmicas. Elas caminham juntas. É duvidoso que qualquer um dos objetivos possa ser bem alcançado sem o outro.

     Considere o menino com um pai ausente, excessivamente controlado pela mãe, com professoras principalmente na escola. Muito do controle em sua vida é dirigido por mulheres, mas a maior parte da disciplina para resistir a esse controle é exercida por homens: vice-diretores, treinadores, seu pai, quando ele chega em casa, ou outros homens designados para lidar com meninos problemáticos. Não é absurdo suspeitar que muitos meninos agem de maneira estranha apenas para atrair uma forte atenção masculina em suas vidas, mesmo que essa atenção seja negativa. Essa ideia é consistente com a experiência da maioria dos conselheiros homens com quem conversei durante os anos em que trabalhei em centros de tratamento (residential treatment centers). O mau comportamento do jovem frequentemente é um clamor por atenção masculina e estabelecimento de limites, mesmo que punitivos. Mas uma presença consistente, positiva e afirmativa do sexo masculino seria muito preferível.


     Em seu livro The Feminized Male, Patricia Sexton lamenta que a maioria dos professores do sexo masculino sejam eles próprios adaptados às normas da sala de aula feminina. Portanto, pouco podem fazer para compensar o dano causado à masculinidade dos meninos em uma sala de aula feminizada. Infelizmente, os homens geralmente são socializados de forma a não seguir carreiras como professores primários. Trabalhar com crianças pequenas é muitas vezes considerado uma ocupação pouco masculina. Alguns estudos indicam que os homens que querem trabalhar com crianças são percebidos de forma suspeita por muitas pessoas como anormais.

     Há uma ideia persistente na cultura escolar hoje de que as virtudes femininas são de alguma forma mais positivas do que as masculinas. Mas isso é simplesmente uma reversão do velho pensamento sexista que muitas mulheres e homens têm lutado para eliminar da educação e de nossa cultura. Temos claramente a necessidade de homens impetuosos (fierce) se envolverem mais em todos os níveis de educação e desenvolvimento dos meninos. Também precisamos olhar para o comportamento do menino difícil de uma perspectiva que tente conhecer os meninos como eles são, em vez de tentar meramente ressocializá-los com métodos químicos de negação da alma ou entorpecentes.

Aula na Grécia antiga. Os meninos eram ensinados como propõe este texto.

     O número cada vez maior de gangues de jovens pode estar se formando como uma tentativa equivocada de preencher a necessidade que todo jovem tem de uma comunidade masculina. Mas um comportamento mais estimulante socialmente virá da conexão com nossas profundezas éticas, não apenas de níveis crescentes de restrição e controle externos. O ritual, o rito de passagem, o trabalho em regiões inóspitas e a orientação masculina podem ajudar os rapazes a se conectar com essas profundezas. Meu livro, Angry Young Men, explora essas questões com muito mais profundidade. 

TEXTOS RELACIONADOS

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As raízes psicológicas da homofobia

 (Este texto é uma tradução de partes do capítulo "Homophobia and Analytical Psychology", de Robert H. Hopcke, oriundo do livro Same-Sex Love and the Path to Wholeness, editado por Hopcke.)

A HOMOFOBIA COMO CONCEITO PSICOLÓGICO


     Independentemente de o próprio George Weinberg ter cunhado o termo homofobia, seu livro histórico, Society and the Healthy Homosexual1 (1972), pode ser creditado pelo lançamento do termo para o discurso psicológico. Este trabalho, que em muitos aspectos representa a culminação de décadas de pesquisas mais objetivas sobre a vida e o ajuste psicológico dos homossexuais nos Estados Unidos, declara o ponto principal e a atitude de Weinberg de maneira mais sucinta em seu título: ou seja, que o “problema” com a homossexualidade, na cultura ocidental moderna e na teoria psicológica, não se deve a nada inerentemente prejudicial em relação à homossexualidade, uma vez que pesquisas menos tendenciosas sobre a vida real dos gays revelam a possibilidade de homossexuais saudáveis. “Em vez disso, existe um conjunto de  preconceitos de natureza social, política, religiosa e psicológica que define a homossexualidade, a priori, como problemática. Para Gordon Allport preconceito é uma atitude aversiva ou hostil em relação a uma pessoa que pertence a um grupo, simplesmente porque ela pertence a esse grupo e, portanto, supõe-se que as qualidades censuráveis sejam atribuídas ao grupo”. Empregando a definição de Allport, Weinberg vê o preconceito da sociedade contra a homossexualidade, e não a própria homossexualidade, como o problema real. Ele usa a palavra homofobia para descrever essa atitude preconceituosa. Ao definir esta atitude como uma fobia e explorar as causas sociais e psicológicas desse medo, Weinberg intencionalmente empregou o mesmo tipo de jargão psicológico que tantas vezes é usado para patologizar a homossexualidade. Ao fazê-lo, ele inverteu a participação da psiquiatria em relação à opressão social e política de gays e lésbicas.

     A descrição de Weinberg da homofobia e seus vários elementos serviu por vinte anos como base para qualquer discussão sobre esse fenômeno. Como outras fobias, a homofobia geralmente consiste em um medo intenso e uma aversão que leva a uma infeliz mutilação da vida social e emocional:

     Há um certo custo em sofrer de qualquer fobia. A rejeição se espalha para todo um círculo de atos relacionados à atividade temida, concreta ou simbolicamente. Nesse caso, os atos imaginados como propensos aos sentimentos homossexuais, ou que lembram atos homossexuais, são evitados. Por exemplo, um grande número de homens se abstêm de se abraçar ou de se beijar… Em geral, os homens não expressam afeição um pelo outro ou anseiam pela companhia um do outro… Homens, mesmo amigos de toda a vida, não se sentarão tão perto um do outro num sofá como as mulheres fazem; eles não olharão nos olhos um do outro com tanta firmeza e carinho. As ramificações desse medo fóbico se estendem até aos relacionamentos entre pais e filhos. Milhões de pais acham que não seria adequado beijar ou abraçar carinhosamente seus filhos.

     Assim, Weinberg defende que a homofobia seja chamada de “doença”, dado o empobrecimento da vida emocional, resultado inevitável de tal medo, e a patologia social que é sua derivada, no caso, as inúmeras formas de violência social e econômica infligidas a pessoas gays.

     Quanto às causas da homofobia, Weinberg aborda pelo menos cinco. O primeiro, o motivo religioso, encontra apoio na proibição judaico-cristã contra o comportamento sexual com o mesmo sexo, uma reprovação baseada em um entendimento particular da sexualidade, que por sua vez é derivada de uma tradição específica de interpretação bíblica. Para equilibrar essa imagem de intolerância religiosa, Weinberg reconhece a existência de outras maneiras não homofóbicas de interpretar a Bíblia com relação ao comportamento sexual, especificamente a teologia do reverendo Troy Perry da Metropolitan Comunity Church (Igreja da Comunidade Metropolitana), que é gay-afirmativa.

     Uma segunda causa mais psicológica de homofobia que Weinberg apresenta é o "medo secreto de ser homossexual”, ou seja, a homofobia como uma formação reativa contra sentimentos e desejos homossexuais inconscientes ou subconscientes. Essa teoria é obviamente derivada diretamente do pensamento psicanalítico a respeito das fobias em geral e da homossexualidade em particular.

     Terceiro, Weinberg menciona a “inveja reprimida”, a percepção de que os homens homossexuais e, em menor medida, as mulheres homossexuais, desfrutam de um estilo de vida mais livre, fácil e menos pesado do que os heterossexuais sobrecarregados com casamento e filhos. Essa inveja dos homossexuais, como toda inveja, leva ao ódio e ao desejo de inutilizar as vantagens que os invejados possuem.

     Uma quarta causa das respostas homofóbicas, claramente relacionada a motivos religiosos e à inveja dos homossexuais, é a ameaça aos valores que a homossexualidade representa. Sobre isso, Weinberg escreve: “Quem não adota o sistema de valores usual de uma sociedade corre o risco de ser visto como um enfraquecedor da sociedade. Porque a pessoa não compartilha dos interesses e objetivos da maioria, suspeita-se dela. Isso permanece assim mesmo que a pessoa produza tanto quanto os outros e trabalhe tão arduamente ao longo da vida.” Enquadrando a homofobia e suas raízes dessa maneira, Weinberg lança um holofote sobre a irracionalidade fundamental da homofobia, baseada em um conjunto de valores e convenções culturais, ao invés de proclamar quaisquer verdades ontológicas concernentes à natureza da sexualidade.

     Finalmente, a quinta e talvez mais curiosa causa para a homofobia que Weinberg aborda é a ameaça representada pelo fato de que os homossexuais são vistos como vivendo uma “existência sem imortalidade indireta”. Essa percepção, Weinberg sugere, provoca no inconsciente uma identificação da homossexualidade com a morte não redimida pela continuação da vida representada pela prole de alguém e constitui uma grave ameaça ao ego, que não pode tolerar a ideia de completa extinção pessoal.

[…]

AS RAÍZES PSICOLÓGICAS DA HOMOFOBIA

     Como Weinberg e uma profusão de freudianos deixaram claro, no nível do que os junguianos chamariam de inconsciente pessoal, a homofobia mais frequentemente representa uma defesa contra os impulsos, sentimentos, desejos e imagens homossexuais inconscientes. As pessoas que estão seguras da sua orientação sexual não têm motivos para temer ou odiar a homossexualidade, desde que as diferenças do outro não tem poder de ameaçar aquilo com que se sente à vontade e seguro. Para homens heterossexuais e mulheres sem conflitos sobre sua sexualidade, a homossexualidade de alguém seria motivo de indiferença, enquanto homens e mulheres que aceitaram sua própria orientação homossexual ou bissexual já trabalharam com medos ou sentimentos negativos que já tiveram. Esse ponto me é familiar e apresentado repetidamente em meu trabalho clínico, quando imagens homossexuais nos sonhos são discutidas em uma sessão terapêutica: para heterossexuais em conflito com sua sexualidade, essas imagens são quase sempre experimentadas como uma invasão assustadora e indesejada. Às vezes, essa ameaça é projetada em mim dentro do relacionamento terapêutico: por exemplo, esses pacientes geralmente expressam o medo de que, com base nesses sonhos, eu lhes diga que eles são “realmente” gays. Às vezes, a própria imaginação onírica dá a esses pacientes boas razões para serem ameaçados, pois aqueles que suprimiram ansiosamente todos os sentimentos homossexuais, a fim de se agarrarem defensivamente a uma persona heterossexual, geralmente são expostos a uma reação compensatória violenta em seus sonhos: estupros homossexuais, escravidão e domínio nas mãos de torturadores, figuras do mesmo sexo exigindo submissão sexual e psicológica.

     Com essas imagens, chegamos ao reino da sombra. Como outras fobias, a homofobia é sem dúvida uma dinâmica sombria, uma vez que o medo e o ódio da homossexualidade são derivados diretamente de valores culturais que insistem em que só o casamento heterossexual é normativo e bom, e tudo o mais é aberrante e ruim. Então, num nível pessoal e cultural, a homossexualidade é lançada no inconsciente e transformada em sombra, dada a estrutura interna estritamente heterossexista que vivemos. Essa qualidade sombria é óbvia nos vários estereótipos negativos das relações homossexuais, muitos dos quais foram provados inverídicos em pesquisas subsequentes2, mas que persistem na consciência pessoal e cultural, porque preserva a normalidade da persona heterossexual: os homossexuais são incapazes de um relacionamento comprometido a longo prazo (a taxa de divórcio heterossexual é convenientemente ignorada). Os homossexuais são promíscuos e obcecados pelo sexo (a infidelidade heterossexual e comercialização da heterossexualidade para vender de tudo, de pasta de dente a automóvel, mais uma vez convenientemente ignorados).  Homens homossexuais são efeminados e querem ser mulheres (o fato de que a maioria das travestis são heterossexuais, é novamente ignorado). O valor rígido dado à heterossexualidade, especialmente a heterossexualidade procriadora, na cultura ocidental, praticamente determina que a homossexualidade como fenômeno e os indivíduos homossexuais serão os portadores de todos os aspectos sombrios da sexualidade que não se encaixam nesse esquema heterossexista.

     O próprio termo homofobia, no entanto, nos dá uma pista para uma compreensão ainda mais profunda. A rigor, seria de esperar que o termo empregado fosse "homosexofobia", e, no entanto, esse “ato falho” conceitual, por assim dizer, é revelador. O significado literal de homofobia, “medo da semelhança”, mostra como as raízes de tal medo e ódio estão no centro do próprio patriarcado.  Como um sistema psicologicamente unilateral, o patriarcado, com suas definições de gênero e validação concomitante de tudo o que é “masculino” e a difamação de tudo que é “feminino”, tem premiado os homens com grande quantidade de poder social, econômico e político. No entanto, o que nem sempre é visto é como esse sistema requer, em um nível psicológico, uma forma consistente de alienação de mulheres e homens.

     A falta de dinâmica é clara quando vista em relação aos papéis das mulheres no patriarcado.  Se o amor das mulheres por mulheres fosse aceito e validado, esse amor levaria a uma revisão radical dos valores sociais pessoais, que atualmente se baseiam na alienação das mulheres de si mesmas, de seus corpos e de suas almas. Para homens, que são comprados com privilégios sociais e econômicos para continuar com um estilo de vida unilateral, a autoalienação é mais sutil.  Certamente, se os homens fossem amar outros homens livre e abertamente, grande parte da vantagem competitiva que mantém vivo o sistema patriarcal se tornaria irrelevante; os incentivos sociais que alimentam a visão dos homens de outros homens rivais em potencial seriam suplantados por outros conjuntos de experiências e de incentivos, talvez mais poderosos do que dinheiro ou poder: a saber, amor, intimidade e aceitação proveniente de outros homens. 


     No entanto, mais ameaçador é o modo como a homossexualidade põe em questão a definição patriarcal unilateral de masculinidade que sustenta todo o sistema em primeiro lugar. Encorajando os homens a se identificarem com uma masculinidade fálica, com a exclusão de todos os outros aspectos da experiência masculina, o sistema patriarcal acaba alienando os homens da plenitude da experiência masculina. Portanto, a homofobia, consequência natural do patriarcado, é precisamente o que ela literalmente denota: um medo e ódio de si mesmo. Para as mulheres, o status inferior delas dentro do patriarcado instila o ódio quase desde o nascimento, de modo que o processo de “saída do armário” da lésbica acaba sendo em grande parte uma recuperação de si mesma. Por outro lado, para homens gays, a equação patriarcal de masculinidade exclusivamente fálica deve ser abandonada, e a definição de gênero expandida para incluir aspectos do self masculino que foram denegridos ou temidos: por exemplo, todos os valores representados simbolicamente pelos falos flácidos, como receptividade, flexibilidade e interioridade, ou qualidades inerentes à imagem do Pai Terra, como fundamento, afeto e educação.

     Assim, a homofobia, tantas vezes aparecendo como um medo do mesmo sexo, é uma dinamite psicológica perniciosa, não apenas homens e lésbicas, mas para homens e mulheres heterossexuais, porque por trás do medo do mesmo sexo, se encontra um devastador medo de si mesmo. A manifestação clínica da homofobia em heterossexuais não precisa ser simplesmente um ódio de gays, mas pode ser de todos os tipos de fenômenos – o medo de sentir prazer no próprio corpo, falta de intimidade com outros homens e mulheres, e uma concomitante falta de validação e comunidade;  ou, como exemplo mais extremo, um senso quase paranoico de competição e perseguição pelas mesmas pessoas que se espera que se espelhem a si mesmas e suas almas, aquelas que são como nós, outros homens, outras mulheres.

A figura do hermafrodita na alquimia
A figura do hermafrodita na alquimia.
     A homofobia é de fato um medo de si mesmo, então é quase certamente também um medo do Si-mesmo, particularmente o Si-mesmo em sua ambivalência. Gays e lésbicas, vivendo em desacordo com a sexualidade unilateral e invariável, proposta como normal, enfrentam essa cultura com a verdadeira amplitude e variedade da experiência humana, enfrentam-na com uma totalidade que em última análise deriva do Si-mesmo. Aqui, a falta de teorização junguiana sobre a homossexualidade posterior a Jung torna-se especialmente decepcionante, pois o próprio Jung sugeriu que a homossexualidade é um “desligamento incompleto do arquétipo hermafrodita, unido a uma resistência expressa a identificar-se com o papel de um ser sexual unilateral”.  “Uma tal disposição”, continua Jung, “não deve ser julgada sempre como negativa, posto que conserva o arquétipo do Homem Original que, de certa maneira, se perde no ser sexualmente unilateral”. 3 Como o andrógino, o homossexual pode ser percebido por meio das lentes do medo e do ódio, visto como monstruoso, uma aberração da natureza, o Outro radical, e, no entanto, o trabalho de Jung exige que seja adotada uma atitude diferente. Se a homossexualidade é um lugar onde, em uma cultura patriarcal unilateral, os valores de uma androginia vivem e prosperam, então a homossexualidade é um dos poucos lugares onde o Si-mesmo se manifesta e onde toda a essência de quem somos como homens e mulheres pode ser plenamente realizada.

     A pesquisa antropológica sobre homossexualidade em outras culturas continua a nos apresentar esse elo aparentemente arquetípico entre homossexualidade e o Si-mesmo andrógino. Os homossexuais são o “terceiro sexo” nas culturas nativas, são os “homens e mulheres” que desempenham as funções xamanísticas e rituais para tantas tribos, papéis que interpõem-se entre o céu e a terra, o outro mundo e este.4 Assim, é preciso pensar se o poder sagrado que esses indivíduos incorporam para a tribo, o tabu que eles guardam e representam, não informa em nível profundo e arqueiro a homofobia que tantos heterossexuais sentem em nossa cultura, fora de si, por inveja ou mesmo terror da sacralidade inveja ou mesmo terror da sacralidade do amor sexual.

REFERÊNCIAS

1. “A sociedade e o Homossexual Saudável”

2. David P. McWhirter and Andrew Mattinson, The male couple: how relationships develop (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1984).

3. Tradução que mescla C. G. Jung, The Collected Works of C. G. Jung, vol. 9/1 (Princeton: Princeton University Press, 1968), p. 71, com a versão portuguesa das Obras Completas, vol. IX/1, §146.

4. Para este fenômeno na cultura americana nativa, ver Will Roscoe, The Zuni Man-Woman (Albuquerque: University of New Mexico Press, 1991); Walter Williams, The Spirit and the Flesh: Sexual Diversity in American Indian Culture (Boston: Beacon Press, 1986); e Jonathan Katz, Gay American History: Lesbians and Gay Men in American History (Nova York: Thomas Y. Crowell, 1976); para exemplos de outras culturas, ver Mircea Eliade, Shamanism: Archaic Techniques of Ecstasy (Princeton: Princeton University Press, 1964).

 (Leia mais a respeito: "As bases psicológicas da atração sexual", "Extinção ou renovação de valores?", "Malévola - a amargura do feminino", "Dorian Gray e a sombra na atualidade", "A importância do rito de passagem na adolescência", "A bela adormecida - iniciação ao feminino")