Um vídeo do You
Tube mostrou seis soldados dançando uma versão funk do hino nacional. Depois de tomarem a posição de
"sentido" e prestarem continência, a introdução do hino nacional
brasileiro é tocada e, quando é seguida de sua versão funk, e os soldados passam a dançar, animada e libidinosamente, uma
coreografia. Este texto não visa legitimar esse tipo de prática, e não a
justifica, mas oferece uma reflexão sobre o ocorrido.
Percebe-se que,
enquanto o hino estava sendo executado na versão tradicional, que é a correta,
considerada como símbolo nacional, os soldados fizeram continência: nisso não se
nota falta de respeito, uma vez que se encontravam sérios e em postura marcial.
A desordem começou mesmo na versão funk
do hino, cujo autor, ao que parece, não foi divulgado e nem criticado. Essa é
uma análise mais centrada no conteúdo objetivo do vídeo.
O vídeo exibe a
confrontação de duas atitudes opostas: uma espiritual, devocional, respeitosa,
e outra instintiva, desleixada e negligente. Os conteúdos espirituais e
instintivos têm uma longa história de oposição, e muito sangue foi derramado
por conta desse conflito. Basta uma breve referência ao tratamento oferecido
àqueles que se entregavam ao sexo desmedido, principalmente nos relatos do
Antigo Testamento e do Alcorão. Refletem, acima de tudo, um processo de
desenvolvimento da civilização. Segundo Jung (1991a), o intelecto evoluiu a
partir desses enfrentamentos e diferenciações. Mas pode-se dizer que o homem,
em geral, chegou a um ponto de unilateralidade máxima com relação ao valor que dá
ao intelecto e à ciência. Parece que se vive atualmente um retorno à entrega
indiscriminada ao instintivo como forma de compensação da parcialidade
anterior, acima de tudo por conta do consumismo desenfreado. Dessa forma, os
soldados exibem no vídeo as duas atitudes opostas: primeiro, a aceitável;
segundo, a repreensível.
Tudo indica que
dançaram e expuseram o vídeo na Internet por prazer. Mas esse prazer decorreu,
ao que parece, de um relaxamento em relação ao que é rígido, tradicional e
imposto, o que é normal em um quartel. A filmagem poderia ter ocorrido em local
não militar, mas ocorreu no âmbito de um quartel. É como se um determinado
espírito trickster (ou malandro) os
tivesse tomado. “Na mitologia, e no estudo do folclore e religião, um trickster é um deus, deusa, espírito,
homem, mulher, ou animal antropomórfico que prega peças ou, fora isso, desobedece
regras normais e normas de comportamento” (WIKIPEDIA, 2011). Não seria difícil
imaginar um grupo de sacis encapuzados de vermelho executando a mesma
travessura. Portanto, a tensão entre o rigor e o flexível, a norma e o anômalo,
o certo e o errado, encontrou sua expressão e escoamento. É provável que, se
tivessem encontrado uma forma mais aceitável de se exprimirem, ou de relaxarem,
não teriam dançado o hino funk. Mas a
intenção, provavelmente inconsciente, era confrontar a norma abertamente, como
se a libertinagem tivesse o mesmo direito de expressão em público que os
costumes. O Carnaval, por exemplo, exerce esse papel.
Já a segunda
atitude dos soldados não ocorreu com a reprodução do hino regular, mas com a
versão funk, que não foi autorizada
pelo presidente da república como prevê a Lei 5.700/71, assim como várias
outras versões tocadas indiscriminadamente. Segundo essa mesma lei “Ninguém
poderá ser admitido no serviço público sem que demonstre conhecimento do Hino
Nacional” (Art. 40). É preciso pontuar que os militares executam rigorosamente
essa norma. E também é obrigatória a sua execução pelo menos uma vez por semana
em escolas públicas e privadas de ensino fundamental (§ único do Art. 39). Mas essas reverências previstas em
lei federal não são executadas e, talvez, sequer conhecidas.
Apesar do
tratamento de rito militar dado aos símbolos nacionais (em psicologia junguiana
seriam chamados “signos” – objeto que representa algo diferente de si mesmo – e
não “símbolos”), percebe-se que essa ocorrência com os soldados reflete uma
perda do significado associado à emoção de identidade com o país e o seu povo,
ou revela, no mínimo, a falta de cultivo de valores na sociedade atual. E aqui não
se pode afirmar que essa perda de significado ou falta de valores ocorra apenas
no Brasil. Parece ser um fenômeno de ocorrência mundial, caso contrário quase nenhum
brasileiro perceberia esses fatos de forma bem-humorada, o que ocorreu. É claro
que esses símbolos, em determinadas ocasiões, são “ativados” emocionalmente em
relação ao seu significado de identidade nacional, e que a expectativa do
Estado é que isso ocorra o tempo todo, de forma contínua. Exemplos de ativação
temporária são a sua manifestação nos jogos da seleção na Copa do Mundo e nos
jogos olímpicos, missões de paz em outros países, etc. Nesses casos aviva-se
novamente a identidade dos símbolos com o país e o povo de origem.
No caso desses
símbolos terem perdido seu significado original, pode haver um motivo essencial.
A política internacional e nacional está relativamente estável. Não há um
distúrbio nacional onde as pessoas precisam de um princípio unificador, de
coesão emocional. Em países em processo de turbulências políticas, a situação
muda de figura. É bem provável que esses símbolos se encontrem repletos de
significado, pois há necessidade de figuras agregadoras. Por isso, talvez a
melhor expressão para indicar o desrespeito dos soldados é, nesse caso,
"despojo temporário de significado". Os símbolos nacionais ganham
nova expressão emocional na medida em que são necessários. Enquanto isso, eles
têm uma função parecida com a que tem Deus para uma pessoa mais ou menos
religiosa, que não passa por maiores dificuldades. Assim que a turbulência da
vida sobrevém, ela se põe a orar a Deus...
Além disso,
existe o fato da falta do cultivo de valores na sociedade de consumo. Nos
comerciais as pessoas são constantemente trocadas por objetos, com referências
bem-humoradas, com o objetivo de valorizá-los: o marido troca a esposa por um
conjunto de canais de esporte de TV por assinatura, a mulher que valoriza o
homem pelo seu perfume, etc. Porém, isso se faz ao custo do sacrifício de
valores humanos.
Há também outra
questão: a série de irregularidades que os representantes do povo brasileiro
executam à nação refletem, com certeza, nos símbolos que a indicam. Se o país,
o Estado e o povo não é respeitado, por que seus símbolos o serão? O vídeo
retrata visualmente o que todos os brasileiros presenciam muitos políticos realizarem
com os recursos nacionais: uma completa deterioração de valores. Ao som do Hino
Nacional, vários políticos dançam o funk
da impunidade, da corrupção, da irresponsabilidade, da improbidade, etc. Na
impossibilidade de se punir aqueles que se comprometeram a representar e a
respeitar o povo brasileiro, do mesmo modo que os soldados juram em bem representar
sua nação e o Exército, pune-se estes que, por projeção e inconsciência, não
têm poder e são mais vulneráveis. As mentes mais simples se satisfazem com a
punição dos soldados, enquanto seus representantes continuam tão inconscientes
e inconsequentes quanto a maioria dos seus eleitores. Infelizmente, o rigor
político não imita o militar. Não que os soldados devessem ser perdoados. Mas
teriam eles executado a dança funk ofensiva
do hino nacional se o cenário político fosse outro?
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