Jung não se voltou em grau elevado para a questão da infância, nem
se preocupou em delimitar uma faixa etária para os seus diferentes
desenvolvimentos. Desta forma, ao se falar aqui do desenvolvimento da consciência
e seus problemas, e de casos abordando o desenvolvimento de adultos ou
crianças, sugere-se uma visão que implica grande investimento emocional na
forma de medo e ansiedade presentes mesmo em tenra idade. Essas possibilidades
de analogia devem-se mais à semelhança do mecanismo psíquico subjacente à
diferença das idades (JUNG, 1986, p. 18).
Jung (1986) aborda a psicologia da infância comparando-a com a psicologia
do primitivo, uma vez que contêm grandes similaridades. Para ele, assim como as
várias fases de desenvolvimento físico pelas quais o feto passa refletem os
estágios evolutivos da raça humana passando pelo desenvolvimento animal, também
ocorre algo semelhante ao nível psíquico.
Assim, certas tribos apresentam a crença de que o homem possui várias
almas. Isso reflete o fato de que a psique do indivíduo não é una e
indivisível, mas pode fragmentar-se facilmente frente a fortes emoções,
alterando o senso de identidade ou provocando sua perda. A consciência do homem
moderno, apesar do alto nível civilizacional alcançado, ainda carece de um grau
moderado de continuidade. O misoneísmo, medo do que é novo e desconhecido,
próprio da psicologia dos primitivos, ainda tem um grande papel atualmente (JUNG,
2001). Se assim o é para o homem contemporâneo, como não o será para a criança
portadora de uma consciência primária e mais fragmentável?
Uma característica marcante do inconsciente é sua autonomia em relação à
vontade do ego. Para o primitivo, e também as crianças em geral, é fácil
atribuir vários acontecimentos desagradáveis em sua psique a espíritos malignos,
uma vez que são projetados no meio ambiente ou produzidos inconscientemente.
Portanto, deve-se atentar sempre para qual simbolismo aponta a psique infantil
nas diferentes manifestações de medo e ansiedade.
O desenvolvimento do ego, que ocorre pelo agrupamento continuado de
conteúdos conscientes dispersos, se dá do nascimento até o final da puberdade.
A consciência emerge do inconsciente “como uma nova ilha aflora sobre a
superfície do mar” (JUNG, 1986, p. 56).
Além disso, a psique da primeira infância, até certo ponto, é parte
integrante da psique materna, e posteriormente, paterna. A criança reage
prontamente a quaisquer evoluções anímicas dos pais. JUNG (1986, p. 58) chega a
afirmar que não existe psique individual independente até a conclusão da
puberdade. Por isso, muitas perturbações nervosas, até mesmo após a idade
escolar, derivam de desordens no campo psíquico dos pais. Mesmo que estes
tentem ocultar suas reações emocionais dos filhos, de modo que nem um adulto
perceba qualquer vestígio delas, ainda assim eles serão influenciados.
A título de exemplo, cita-se a seguir um fato ilustrativo dessa
dependência psíquica:
“Observei o caso de uma menina muito nova, que desde
os primeiros anos padecia de uma constipação extremamente desagradável. Já
tinha sido submetida a todos os tratamentos somáticos que se possa imaginar.
Mas tudo em vão, porque o médico deixou de considerar um fator importante na
vida da criança, a saber, a mãe dela. Quando vi a mãe, compreendi imediatamente
que era a verdadeira causa da doença da menina. Propus-lhe que se submetesse a
um tratamento, e ao mesmo tempo aconselhei-a a deixar a criança entregue a
outra pessoa. Quando outra pessoa passou a cuidar da criança, no dia imediato
desapareceu a perturbação digestiva. A solução desse problema foi até muito
simples. Esta menina era a caçulinha, a queridinha de uma mãe neurótica. A mãe
projetava nela as suas próprias fobias e a tinha envolvido ansiosamente de
tantos cuidados que a criança não podia sair desse estado de tensão permanente
(...)” (JUNG, 1986, p. 79)
Em outro caso, JUNG (1986,
p. 57) chega a analisar o problema erótico e religioso de um pai que não se
lembrava de seus sonhos, através dos sonhos do filho, fartos de simbolismo
mitológico. Tais sonhos não são comuns ou apropriados, exceto na meia idade,
com as preocupações espirituais que se originam da aproximação do final da
vida. Daí Jung concluir que sua presença em crianças apontava para problemas
parentais ou até para a aproximação da morte.
Uma criança de 10 anos dera um pequeno caderno contendo uma fantástica
série de sonhos como presente de Natal ao pai (JUNG, 2005, p. 69). As imagens e
o conteúdo sobrenatural dos sonhos eram completamente incompreensíveis a ele,
que era um psiquiatra. Jung conseguiu relacionar dois deles com motivos
bíblicos. No entanto, a família tinha um conhecimento muito superficial das
tradições cristãs. Os demais sonhos associavam-se com motivos de iniciação tribal,
ritos mitraicos e símbolos alquímicos, completamente inacessíveis à menina e
desconhecidos dos pais. Jung teve a forte sensação de que um desastre se
avizinhava daquela vida. Podiam-se esperar essas imagens de uma pessoa velha,
com a atenção voltada para suas memórias, mas não de uma criança. Como se
constatou depois, os sonhos realmente a preparavam para a morte.
Outro caso que demonstra o papel e a origem dos medos e da ansiedade infantis:
“Recordo-me do caso ilustrativo de três meninas,
filhas de mãe devotada ao extremo. Ao entrarem na puberdade, acabaram confessando
mutuamente, muito envergonhadas, que por anos a fio tinham tido sonhos
horríveis sobre a mãe. Sonhavam que ela era uma bruxa ou um animal perigoso, e
não conseguiam entender isso de maneira alguma, pois a mãe era amorosa e se
sacrificava por elas. Anos mais tarde a mãe passou a sofrer de doença mental e
nos acessos de loucura se punha a andar de quatro como um lobisomem e a imitar
o grunhido dos porcos, o ladrar dos cães e o rosnar dos ursos. Os exemplos que
aqui apresento aos senhores mostram uma aproximação extraordinária entre os
hábitos psíquicos existentes nos membros da mesma família, chegando quase à
identidade.” (JUNG, 1986, p. 59)
O tratamento adequado nesses casos é o relato e a conexão dos conteúdos das
lembranças ou o simples afastamento dos obstáculos, que pode ser conseguido com
a análise dos pais.
Para Jung (2001) os primeiros sonhos infantis evidenciam normalmente a
estrutura básica da psique, traçando em linhas gerais o destino do indivíduo. A
mesma função também tem aqueles fatos que para o adulto são insignificantes,
mas que as crianças lembram vividamente. Quando interpretados como símbolos
acabam revelando problemas na constituição psíquica infantil.
“Jung contou uma vez a um grupo de estudantes o caso de uma jovem
mulher tão obcecada por sua angústia que suicidou-se aos 26 anos. Quando
criança ela sonhara que "Jack Frost'' (o homem da neve) entrara em seu
quarto enquanto ela estava deitada, e lhe beliscara o estômago. Acordara e
descobrira que ela mesma se beliscara, com a própria mão. O sonho não a
assustou; apenas lembrava-se dele. Mas o fato de este seu estranho encontro com
o demônio do frio — da vida congelada — não lhe ter provocado nenhuma reação
emocional não pressagiava nada de bom para o seu futuro e era, em si mesmo, uma
anomalia. Foi com esta mesma frieza e insensibilidade que, mais tarde, pôs fim
à vida. Deste único sonho é possível deduzir o destino trágico de quem o sonhou,
já antecipado na infância por sua psique.” (JUNG, 2001, p. 165)
Pode-se concluir de fatos como este que o medo de figuras grotescas ou
monstruosas pressentidas durante a noite ou reveladas em sonhos podem indicar
problemas psíquicos pressentidos pela criança. Porém, uma reação inusitada a
esses símbolos esboça problemas de gravidade maior no futuro, constituindo-se
até obstáculos à continuidade da própria vida.
Quando o desenvolvimento natural da consciência é
seriamente perturbado, a criança costuma produzir em seus sonhos e desenhos
figuras circulares, quadrangulares ou nucleares. Essas imagens visam
estabilizar a consciência e unificar os seus diversos fragmentos simbolizados por
essas representações. Com isso, naturalmente, a criança dispõe de um mecanismo
psíquico estabilizador instintivo, o que não a dispensa de um tratamento
psicoterápico apropriado.