Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

Por que não consigo mudar?

O paradoxo curioso é que quando eu me aceito
como eu sou, então eu mudo.

Carl Rogers

     Essa pergunta é o primeiro passo rumo ao autoconhecimento. Para fazê-la, temos que nos dar conta de que não conseguimos nos mudar. O máximo que podemos fazer é alterar nosso comportamento de forma temporária, a custo de muito esforço e sofrimento. Por incrível que pareça, muitas pessoas não se dão conta de que não podem mudar a si mesmas. Apenas depois de muitas decepções, tentativas e erros, e mesmo assim é possível que morram sem sabê-lo. Não conseguimos modificar a nós mesmos porque somos ao mesmo tempo sujeito e objeto da mudança. Se o agente da mudança conseguisse alterar-se, já não seria agente, mas seu próprio objeto. É como se quiséssemos ser um, ainda que outro, diferente, sendo dois. Porém, se consigo perceber que nunca consegui alcançar meu objetivo, isso significa que me rendi. “Rendo-me!” - este é o início da própria aceitação.
     Então aparece um indivíduo que diz: “O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como sou, então eu mudo”. Curiosa também é como essa mudança se dá ao nos aceitarmos, pois ocorre sem esforço algum. Pelo contrário, o que requer esforço, e muito, é resistirmos ser quem somos, é querermos parecer com o ideal que almejamos, que nossos pais, parentes, amigos e a sociedade anseiam. “Aquilo a que você resiste, persiste”, afirmou Jung. É como uma mola que comprimimos contra uma parede. Podemos pressioná-la com o maior vigor que tivermos, até um certo limite. Mas com o tempo nos cansamos, e aí a mola se estende. Nessas ocasiões ficamos irritados ou explodimos, neste caso se largarmos de vez a pressão que incomoda. Porém, se aceitarmos a mola como ela é, distendida, sem nos incomodarmos em pressioná-la com o único objetivo de reprimi-la, poderemos até aproveitá-la em certas tarefas.
     Nós não temos “defeitos”; apenas possuímos características definidas que podem ser empregadas ou não adequadamente. Mas pensamos que, porque algo foi aplicado indevidamente, deve ser mau. Nada mais longe da verdade. Nada é bom ou mau, apenas é. Bom ou mau é o seu emprego, é a relação que tenho com certos aspectos ou partes de mim mesmo. Essa mesma perspectiva pode ser estendida aos outros indivíduos: não podemos rotular alguém com a característica que apresenta ou exprimiu em certo momento ou lugar. Ninguém é “idiota”, “lerdo”, “preguiçoso”, “orgulhoso”, “sem caráter”, etc. Mas em geral tomamos o todo pela parte. “Você é burro!”. É claro que todos sabem que a pessoa em questão está sendo burra naquele momento, mas não é o que a criticada recebe. Não! Ela, muitas vezes, ficará martelando internamente o quanto foi “burra”, se culpando por não ter sido quem devia. Existem muitos juízes para avaliar quem devemos ser a todo momento.
      Outra frase que gosto bastante e que amplia mais ainda o que escrevo aqui é outra afirmativa de Jung: “O que negas te subordina; o que aceitas te transforma”. É a mesma frase de Rogers dita de outra maneira, com ênfase em outros aspectos. Aqui fica mais explícita a nossa subordinação ao que negamos ou resistimos em nosso interior. Ficamos literalmente escravos do que não queremos ver; escravos e vulneráveis, justamente porque não o percebemos. Imagine você entrando em uma sala totalmente sem luz mas repleta de móveis, tapetes, enfeites e almofadas. A menos que fique totalmente quieto, irá tropeçar e se ferir, talvez até fatalmente. É o que ocorre conosco se ficamos no “escuro” em relação ao que somos. A todo momento “tropeçamos” em nós mesmos, no que somos, nas nossas funções, ideias, lembranças e sentimentos. Topamos com o inesperado porque não queremos nos dar conta dos nossos pontos cegos. Nos decepcionamos com o que nos constitui, com o que somos feitos; tudo porque esperamos demais de nós mesmos. Como Alice (no País das Maravilhas), ou somos por demais altos (e aí orgulhosos, prepotentes, arrogantes), ou por demais baixos (nos achamos aquém de nossas reais capacidades) nas diversas situações.
     Um dos interessantes efeitos da análise em psicoterapia é, com o tempo, conseguirmos “ser” cada vez mais profundamente quem realmente somos. Ocorre, no entanto, que à medida em que ficamos mais espontâneos e fluidos em ser autênticos, conseguimos lidar cada vez melhor com nossos problemas e com as pessoas que nos rodeiam. A energia que antes aplicávamos em resistir ao que somos passa a ficar livre, e com isso nos sentimos mais libertos, com maior disposição, e muito mais dinâmicos. Com isso, as amarras que impediam que nos adaptássemos melhor a certas circunstâncias e que nos comunicássemos com determinadas pessoas, se desatam. Por que isso ocorre? É que, à medida que falamos sobre nós mesmos, sobre nossos problemas, nossas relações, nossos pensamentos, emoções e sentimentos, o fazemos porque conseguimos superar a vergonha, o medo ou seja lá o que for, para nos expressarmos àquele a quem nos dirigimos. Apenas falamos daquilo que conseguimos aceitar, e na medida em que o consentimos. Se consigo expressar algo íntimo, é porque a estou assumindo como minha, e esta passa a fazer parte do que conheço como eu. 
      Por querermos ser amados, por desejarmos ser aceitos, é que não queremos ser quem somos: é o paradoxo oposto, espelho do que citei. Pois “ser eu” é, aparentemente, ser irresponsável, egoísta, sem limites, criminoso, mau, etc. Foi isso o que nos foi ensinado ou imposto. Com isso cultivamos certas “qualidades”, valorizadas coletivamente, como partes de nosso eu, em oposição aos supostos “defeitos”.
     Tudo o que se passa em nosso íntimo e não é expresso não faz parte de mim, senão apenas potencialmente. Isso porque apenas sou eu mesmo com e em referência a outra pessoa. Caso contrário esse eu está apenas “represado” e não fluindo nas relações. Poderíamos chamar essa espécie de “eu” de “eu virtual”. Não é um “eu concreto”. Ao falar de si você se exterioriza, ganha substância, torna-se um outro, não fica somente dentro de si mesmo. A partir disso, outros podem falar de você como é porque sabem em que consiste você, já que se expressou autenticamente. Eles o (re)conhecem, ainda que pouco, pelo que é, e não pelos papéis que desempenha (amizade, “filho de fulano”, profissão, etc.). Em psicologia analítica poderia dizer que a pessoa que passou pelo processo de “eu virtual” para “eu concreto” restabeleceu sua conexão com o Si-mesmo, ou o eixo ego–Si-mesmo. Ela então está arquetipicamente firmada, pois encarna o Eu Maior (aquele que é). [Quem quiser compreender melhor esse assunto poderá ler o texto “Gita – uma análise do Eu Sou”.]
     “Só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos”, poderíamos acrescentar, com Jung. Em resumo: não é querendo ser diferente, sendo outro, que vamos mudar. A mudança, a cura que mais queremos, a saúde psíquica, não vem de deixar de ser original para ser cópia, pois só podemos ser uma pessoa: aquela que somos. Fugir disso é fugir de si mesmo, é ser doente, desviante, debilitante, fraco. A fortaleza, nossa base, reside em nossa essência, na existência daquele que é.